segunda-feira, 29 de março de 2021

DONA VIRGÍNIA - PARTE III

 

Escola do Camburi teve início na capela 

      Virgínia Lefèvre, após dez anos em Ubatuba, em 1956, apresenta a sua compreensão do universo caiçara e se propõe a fazer alguma coisa pelos moradores do extremo norte do litoral paulista.


Os caiçaras passaram anos vegetando, quase esquecidos, tentando extrair alimento do solo e do mar, trabalhando às vezes em obras de construção e outros biscates. O pouco que percebiam mal dava para comprar velas, fósforo, querosene. As crianças, subnutridas e expostas a doenças, só vingavam por milagre. Nasciam robustas e espertas e vicejavam em quanto a mãe os amamentasse. Em lugares mais remotos ainda se crê que é bom para o umbigo do recém-nascido passar-lhe picumã das chaminés, o que, naturalmente, causa muita infecção fatal. Ao começar a alimentação de mingaus de farinha de mandioca e bananas, porém, iam perdendo saúde. 

 

Entre as poucas distrações do caiçara contavam-se as danças herdadas dos negros, sem música, num ritmo de pandeiro e tambor, e as festas religiosas, idênticas ao que era há um século. Sua imaginação se nutria das superstições herdadas dos brancos, índios e negros. Acreditava no lobisomem, em monstros marinhos e na mãe d’água. Em longos anos de ignorância, acumulara “receitas” como estas contra doença: para picada de cobra, beber uma xícara de querosene com três dentes de alho socados. 

 

De uns anos para cá, o litoral paulista começou a ser “descoberto” pelos turistas. Muitos deles, orientados por gente poderosa e inescrupulosa, puseram-se a ludibriar o caiçara, “comprando” suas terras. O turista chega, constrói casa de luxo que abre durante poucas semanas por ano, mas nada planta nas terras compradas. Os gêneros desaparecem e os preços sobem. 

 

Foi assim que encontrei Ubatuba há dez anos. Apesar de desconfiado e acanhado a princípio, o caiçara me pareceu inteligente, bom e muitíssimo aproveitável. Tive uma ideia. Em São Paulo, com um grupo de amigas eu vinha há alguns anos tentando ajudar crianças superdotadas que, por falta de meios, não poderiam continuar os estudos por precisarem ajudar as famílias. Percorremos duas ou três escolas públicas e escolhemos cinco meninas das que tiravam as melhores notas e pertenciam a famílias mais pobres. Angariando alguns poucos recursos entre parentes e amigos, não nos contentamos em encaminhá-las para o ginásio ou curso comercial; tomamos conta da família toda, dando-lhe tratamento médico e dentário, enfim, elevando-lhes o nível econômico. Queríamos provar que a boa vontade e o idealismo eram coisas mais valiosas e produtivas que as grandes verbas. E foi assim que formamos a Sociedade Pro-Educação e Saúde. Por que não levar o seu auxílio ao litoral de Ubatuba, abrindo uma escola ali? Compreendíamos muito bem a enorme carga que o governo estadual carregava para manter os serviços sociais oficializados. Poderíamos, porém, dar a nossa migalha e, se conseguíssemos elevar o nível de vida de uma dúzia de famílias, estas iriam multiplicando os dons recebidos e um dia a seara seria grande. 

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