sexta-feira, 26 de março de 2021

A MÃO DE CERA

Mestra e mestres (Arquivo JRS)

Tocadores e cantadores (Arquivo JRS)


Dando continuidade às Memórias do Fandango Caiçara em Ubatuba, o nosso estimado Rogério Estevenel nos apresenta a Parte III, se referindo à devoção de São Gonçalo, o milagroso violeiro.


     Quero contar um pouco das devoções caiçaras de Ubatuba e uma delas é  dedicada a São Gonçalo d’Amarante, santo português, da Ordem dos dominicanos, que tinha o dom da palavra. Um religioso à frente do seu tempo: contextualizava e aplicava a Bíblia para o cotidiano na época em que viveu, era alegre e amigo de todos, gente como a gente, pau pra toda obra. Converteu muitos alcoólatras, bandidos, prostitutas pela sua disponibilidade e desenvoltura com a música, dança e a palavra de Deus (estratégia nota 10). Contam que que se aproximava dos mais pobres sem o hábito dominicano para não interferir no processo de conversão dos desvalidos da sociedade portuguesa. Sua missão era bem objetiva, contudo para não cair em tentação colocava pequenas pedras em sua bota (sacrifício de mortificação), para não esquecer seus propósitos, dançava, cantava e por meio da alegria apresentava uma nova vida ao pobre  pecador. Ganhou fama de milagroso quando, em súplicas, fez uma enchente baixar repentinamente, e, aos que já estavam passando fome, uma fartura de peixe após a vazante, entre outros fatos miraculosos.

No Brasil, a devoção a São Gonçalo se espalhou rapidamente pelo território colonial. Ubatuba tem a honra de possuir em seu acervo de patrimônio imaterial a Dança de São Gonçalo, que acontece apenas mediante pagamento de promessa por uma graça alcançada pelo devoto. 

Antigamente a dança de São Gonçalo era uma constante entre as praias e sertões de norte a sul do município, sempre com muito respeito, devoção e oferecimento de uma farta mesa de alimentos aos participantes.

A dança de São Gonçalo de Ubatuba é com certeza uma pérola para a comunidade caiçara que ainda preserva essa tradição. A dança pode durar mais de três horas, composta geralmente por doze pares entre dançadores e dançadoras, além dos violeiros que fazem os versos na hora.


Oh! meu São Gonçalinho,

Ele é tão bonitinho,

Ele come o seu pão,

Ele bebe seu vinho,

Ele deita na cama

E levanta cedinho

Ora viva o São Gonçalo!


A dança é dividida em três partes, geralmente de uma hora cada, onde os dançadores fazem as coreografias e voltas em meio a sapateados. Quem começa a dança obrigatoriamente tem que terminar, é permitido a substituição do dançador apenas na segunda parte.


A terceira parte é conhecida como “Misura” é a reverência individual dos dançadores e dançadoras ao santo protetor dos violeiros e o verdadeiro santo casamenteiro (especialmente das velhas viúvas), as vezes ocorre uma dobradinha com Santo Antônio para socorrer a menina donzela e a viúva folgazona a um casamento virtuoso.


São Gonçalo do Ubatumirim, Ubatuba-SP, O ano era o de 2007, início da festa da Mandioca, uma quinta-feira. Dona Maria, senhora de idade avançada da comunidade, mãe do “Dito do Estaleiro” aproveitou o evento para cumprir sua promessa (violeiros dançadores e dançadoras reunidos), porém sua casa não comportava os presentes, e algo inusitado foi colocado em prática: a promessa seria paga em cima do palco armado para a festa que começaria no dia seguinte, mas já havia um clima de festa desde o começo da tarde com algumas barraquinhas que resolveram antecipar o funcionamento (a dança é exclusivamente realizada em casas). Abriu-se uma exceção por consideração a D. Maria e assim prosseguiram...

No palco uma mesa com toalha, a imagem de São Gonçalo (estava com cara de Santo Antônio!!!, mas minha avó já dizia “Mas vale a fé do que o pau da barca”) e uma vela. 

D. Maria ficou muito grata com a aceitação. Pedro Brandão e Seo Jorge eram os violeiros, logo se aprontou a fila no palco e a dança começou... Foi feita uma singela oração pelo mestre da dança José Moisés (Zeca do Promirim) e a viola repicou! Iniciava-se a dança... na primeira volta do sapateado o Santo e a vela logo foram a baixo! D. Maria, piedosa com o fato, resolveu sentar-se próximo à mesa e segurar o santo e a vela até o fim, porém sua fragilidade devido a idade avançada fez com que seu braço ficasse encostado no beiral da mesa. A dança assim prosseguiu... a cada golpe dos sapateados no assoalho do palco era uma “chuva de parafina” no braço de D. Maria que ficou “lambrecado”, pois “sacolejava” tudo. 

Com a promessa cumprida... era só desenformar o braço de cera! Estava prontinho era só levar na sala dos milagres em Aparecida e agradecer o milagre de termos em Ubatuba uma linda expressão de devoção popular. Viva São Gonçalo (vestido de Santo Antônio) e Nossa Senhora Aparecida!!! Viva!!!


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