quinta-feira, 11 de março de 2021

10 ANOS DE VIDA - O MENINO DA CANOA

 

Pescadores da Barra Seca, em 1985 (Arquivo Santiago)

        Aquele menino da popa da canoa, convivendo com o povo da praia da Barra Seca, era como coruja, prestava atenção em tudo. Cresceu respirando o cheiro da maresia, se engajou em nossas lutas, em causas nobres, pela vida. Hoje ele também se destaca como escritor. 
       Salve, Santiago! Hoje é a sua vez de comemorar conosco os 10 anos de vida. Valeu, irmão!

        Agradecendo o convite do querido Zé Ronaldo, de escrever para celebrar os dez anos do blog desse grande cronista da cultura caiçara, me lembro de uma vez tê-lo encontrado num ônibus e proseamos um pouco sobre os rumos de nosso povo, tão resistente, mas também tão sofrido com os descaminhos que a história humana impõe.


       Sou caiçara, criado na pesca de meu pai com o antigo arrastão de praia, prática criminalizada por leis arbitrárias e distantes da realidade de um povo ancestral, com um ramo da família no interior, duas culturas irmãs, a caiçara e a caipira, ambas tocadoras de viola, agricultoras, pescadoras, uma no rio, outra no mar e ambas sofrendo as agruras da civilização que cresce sem organização, cimentando a terra, derrubando árvores e levantando prédios, expulsando as gentes da beira das praias, onde cresceram e criaram seus filhos  e filhas por gerações.


        E entre tantas lutas e labutas que a gente encontra pelo caminhar dos tempos, me recordo os dias de pesca com meu velho pai. Os antigos camaradas de puxada de rede, o Viola, o Major, o Giba, a canoa de cedro, o rancho na Barra Seca, o mundo que parecia não ter fim na infância do menino solto nas areias das praias. Mas teve. E como escreveu um poeta: “minha pátria é minha infância, por isso vivo no exílio”. 


            Trabalhadores e trabalhadoras do Mar. Desde há muitas gerações. O povo que, há muito tempo na lida com a terra obtém conhecimento para os plantios e tratos com a Floresta Atlântica, há muito tempo lida com as águas também. Homens e mulheres, herdeiros e herdeiras de práticas e sabedorias antigas, ancestrais, vindas da navegação das épocas pelos avôs e avós das gerações. Anciãos que o tempo também vai levando... E se o mesmo tempo que tudo leva não encontrar novas mãos com remos e redes adentrando as águas na busca do alimento e do sentido do existir, as praias restarão vazias de culturas que por tantos séculos viveram nesses Territórios de Terra e de Mar.


    Mas essas novas mãos já não podem pegar somente em remos e lançar redes. Os tempos são outros. As transformações correram ligeiras como vento forte. Os caminhos de pé foram substituídos pelas rodovias, os ranchos de pesca foram cobertos por condomínios e cimento, as roças foram proibidas e o alimento já não vem mais desse chão.  É preciso que essas novas mãos peguem também o destino e o sentido da vida de um povo, do seu próprio povo, como o leme de um barco em meio à tempestade. É preciso que peguem juntos, com a escuta dos mais velhos, com o olhar para os mais novos, os filhos e as filhas, que são sementes de Mar e de luta. E trabalhem, juntos, trabalhadores e trabalhadoras do Mar.


      Dia desses, em uma reunião com órgãos do Estado para tratar de questões da pesca, num universo muito distinto do dia a dia dos pescadores remanescentes, pois fazem leis sobre o mar que não estão conforme o mar, escutei a fala de um velho pescador diante de tanta burocracia e falta se sensibilidade com o povo que tira das águas seus sustento diário há séculos. Quem faz as leis estuda a água, mas não escuta quem vive nelas, estuda o peixe, mas não ouve quem conhece o peixe. Meu pai, quando teve de parar de pescar, me disse quando perguntei o motivo: “a lei é igual a rede que pega o peixe pequeno, mas não emalha o grande”. Agora pediram carteira de pescar. E o velho pescador que estava quieto numa cadeira durante a reunião levantou-se, segurou o chapéu de palha no peito e falou: 


     - Eu não sei dessas coisas de papel, eu sei das coisas da água. Delas é que eu me sustenho e nelas é que eu me fio. Eu não tenho nada disso aí de carteirinha, pesquei a vida inteira assim e sempre teve peixe. Agora é que tem menos com isso tudo de plástico, barulho, gente, lanchas no mar. Essa carteirinha de pesca vai trazer o peixe de volta?!


– Mas o senhor não tem carteirinha de pesca?! E com o quê o senhor pesca?! 


– Eu pesco com a rede, oras!!


         É, Zé, o tempo é uma nuvem ligeira distanciando no horizonte, mas enquanto guardarmos e contarmos nossa memória sempre haverá alguém para remar nossa canoa de volta ao porto, trazendo o peixe, o sonho e a continuidade de nossa história.

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