sábado, 4 de maio de 2013

QUE BOM!

"O menino viu por ali um osso de perna de carcará" (Arquivo JRS)


                Barollo e Leny: sejam bem-vindos ao blog!

             Que bom que sempre existiu alguém a contar histórias (as suas e as dos outros)!
                Na minha vida, como já disse em diversas ocasiões, os meus avós, sobretudo Estevan e Eugênia, eram os pontos de atração de nossas fantasias. Deles ouvíamos, sobretudo nos serões, as histórias da nossa terra, de personalidades ímpares, mas também as clássicas devidamente adaptadas ao nosso contexto. Um exemplo? A história de João e Maria!

                “Crianças; prestem atenção! Joãozinho  e Mariquinha eram duas crianças da idade de vocês. Juntos com um pai trabalhador e uma mãe amorosa eles eram muito felizes. Porém, não demorou muito para uma doença chamada de peste espanhola chegar naquele lar. Foi o que matou a mãe. Houve uma choradeira porque a mulher era muito querida. Todos da vizinhança sentiram muito. Se perguntavam: ‘O que seria, agora, do viúvo e das duas crianças?’.    Não demorou muito para que alguém se oferecesse como madrasta dos infelizes. O pai aceitou porque precisava de alguém que cuidasse deles.
                A madrasta logo se revelou uma mulher terrível. Batia nos dois, escondia a comida em vez de repartir, mentia para o pai caluniando as crianças.
Chegando um tempo de carestia, quando a fome andava por aquele lugar matando muita gente, a mulher, depois de muitas maldades e mentiras contra Joãozinho  e Mariquinha, propôs ao marido que os enteados fossem abandonados na floresta, que é uma mata muito fechada com bichos terríveis que nem na Arca de Noé foram aceitos. O pai, temente a Deus, se recusou a fazer tamanha maldade. Mas a megera continuou insistindo, dizendo que era mais provável eles sobreviverem no mato do que em casa, que a fome já rondava por ali, que Deus, tão cuidadoso até dos animais, também cuidaria das crianças na mata virgem etc. E a mulher maldosa, tal como a Eva no início dos tempos, conseguiu o seu intento: o homem decidiu levar as crianças para abandoná-las numa serra distante.
                Numa manhã bem bonita lá se foram os três ao mato  cortar palmitos e recolher coco pati. Era época dessa gostosura, quando ele começa a brotar e fica bem docinho. As crianças se animaram aparentemente, porque Joãozinho escutara os planos da madrasta. Mariquinha não sabia de nada.  Ardiloso, o menino, em sua bissaca, onde carregava pedrinhas para atirar com o bodoque, conforme iam andando, soltava uns pedregulhos esbranquiçados, bem parecido com aqueles que tem no Rio do Inhame, para marcar o caminho. O pai, deixando os filhos sentados numa clareira, foi se afastando sorrateiramente, mas pesaroso do ato que fazia. Bem triste se dirigiu à casa. A perversa companheira se mostrou contente pelo feito. Mas a alegria durou pouco. De repente, do meio das taquaras surgiram as crianças. Fingindo tristeza pelo pai tê-los perdido na mata, a madrasta quis saber de como encontraram o caminho de volta. Mariquinha, coitada, antes que o irmão a impedisse, contou o ardil das pedrinhas. Bastou segui-las pelo chão.
                Passado um tempo – e continuando as maldades! – novamente o pai levou as crianças para serem abandonadas. Só que desta vez, sem poder catar pedregulho, Joãozinho encheu a bissaca  de pedaços de pães velhos. De novo a repetição da história. Porém, ao tentar achar o caminho de volta, uma surpresa: os pássaros, sobretudo uru e jacutinga que tinha demais, comeram os nacos de pães. Agora sim estavam perdidos!
                Mariazinha ainda chorou bastante porque tinha medo da escuridão e dos bichos. Pior foi quando a mosquitada chegou no serão, sem respeitar o abrigo feito de folha de guarecanga. Tudo era como um breu. Só em torno deles a luminosidade era intensa. Parece que Deus mandou todos os vaga-lumes para clareá-los naquela imensidão escura e medonha. Ao acordar, pegaram o ‘de comê’ ali mesmo, de um cambucazeiro. Era mês de fevereiro, já no final, quando essa e outras frutas abundam na mata.
                Os irmãos, andando um dia inteiro, novamente tiveram a ramagem das árvores como teto. No outro dia, não longe de onde pousaram, avistaram uma casa de sapê e uma casa-de-farinha soltando fumaça. Na hora se lembraram de que o pai contava: ‘No alto daquele morro mora uma bruxa velha que come crianças’.  Mas a fome, a saudade de uma farinha torrada e de um beiju venceu os dois. De longe, escondidos, viram que a mulher forneava. Perto dela um bichano miava. O Joãozinho era de muita esperteza! Pegou uma vara pontuda de taquara e subiu na cobertura de sapê. De lá, após afastar a palhada, usando a taquara ele espetava o beiju e puxava. Que gostoso! Enquanto isso, a bruxa ralhava com a gata: ‘Chipe, chipe, minha gata. Depois de cozido tu comerás!’. É que ela notou o beiju sumindo e pensava que a gata estava comendo. Enquanto isso, os irmãos já estavam empanturrados sobre a cobertura. Aí o pior aconteceu: os dois, distraídos pela lambança, caíram dentro da casa-de-farinha. A velha, depois do susto, entendeu tudo. Quis saber da história das crianças.
                Após escutar atentamente, com os olhos brilhando, ela fez a proposta: ‘Vocês ficam morando comigo. Eu já sou velha, não enxergo direito e não tenho ninguém a ser a gata. Onde come dois come quatro!’. Joãozinho e Maria toparam. Assim foi passando o tempo. O menino que não era nada bobo, não demorou muito para cismar de alguma coisa errada na relação. É que a velha, a cada semana, pegava a mão da Mariazinha e, depois de apalpá-la resmungava: ‘Ainda está muito magra. Preciso dar mais comida aos dois’. Então era verdade o que o pai contava sempre. E agora? Eles, recebendo mais comida, feita num enorme caldeirão de ferro, inevitavelmente engordariam. Olhando para o chão, o menino viu um osso de perna de carcará. Nisso veio a ideia: a partir da próxima semana, em vez do dedo, a bruxa vai tocar esse osso. Vai dar certo! Osso nunca engorda! Deu certo! Certíssimo! A cada semana o mesmo resmungo após o ‘exame do dedo’: ‘Tá sequinho ainda. Preciso dar mais comida’. E assim continuou até o dia infeliz que o tal osso desapareceu. A velha ficou satisfeita: ‘Agora sim! Vocês já estão prontos! Fiquem aqui que eu vou colocar mais água para ferver. Tempero (alfavaca, coentro e pimenta) não falta no cisqueiro!’.
                Enquanto o grande caldeirão fervia, espalhando um cheiro bom pela casa, Joãzinho, de combinação com a irmã, deu um empurrão na velha maldosa. Ela caiu gritando dentro da água fervente. Deve ter morrido. Só que a carne, de cracachenta que era, não amaciou nunca. ‘Igual carne de urubu velho’. Os dois sumiram no mato. Nem espinho de brejauba atrapalhou a desabalada corrida. A gata foi atrás. Não demoraram muito para encontrar o pai. Ele estava desesperado, tinha se arrependido. Mandou a mulher cruel embora e, há meses, procurava os filhos pela floresta. Até na Serra da Bocaina já tinha vasculhado tudo. Estava barbudo, todo sujo e esfarrapado. Os três se abraçaram, riram e choraram muito.
                Só sei de uma coisa: até hoje eles são felizes numa badeja lá no meio da serra. Nunca mais se separaram. Em volta da casa tem de tudo plantado por eles. Que lindeza é o mandiocal deles!”.

                E no fim de uma história assim, nós todos suspirávamos: “Ah, que bom!”

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