terça-feira, 8 de dezembro de 2020

PRECONCEITO

 

Galo de Jambeiro (Arquivo JRS)

    Seo Antônio foi o primeiro coveiro que eu conheci.  Era um negro bem magro, muito acolhedor e pronto para uma boa prosa a qualquer momento. Sempre de chapéu na cabeça, trabalhava no cemitério do centro da cidade, mas era da divisa de Paraty, primo do saudoso seo Genésio, uma liderança importante no quilombo do Camburi. Ali, no Jambeiro, era o lugar da casa deles. Assim me explicou um dia: "Defunto rico fede mais que defunto pobre. Eu, nesses anos todos trabalhando aqui, posso testemunhar isso. Um mendigo não solta nenhum cheiro; um rico, passando uma hora no velório, já fica difícil de aguentar se não houver umas pedras de naftalina dentro do caixão".

     Triste país onde a maioria de seus habitantes é  constituída por afrodescendentes, mas ainda se cultiva preconceito por causa da cor da pele e se pratica todo tipo de violência pelo mesmo motivo. Ao me encontrar regularmente com o Raimundo, me recordo de quando ele nos contou a seguinte situação:

    Eu era jovem, tinha trinta anos, não gostava de praia. Só ia na praia para tomar cerveja e ler jornal, mesmo assim, debaixo de sombra.

     Um dia, ao chegar na praia sentei à mesa de um quiosque e pedi uma cerveja. Coloquei no copo e pedi uma coca. Tomei a metade da coca e deixei um pouco no copo. Perto da minha mesa tinha uma senhora aparentando cinquenta anos. Era uma senhora bastante nervosa. Com ela estava sua neta, com muita fome. A menina tomou o resto da coca que eu deixei no copo. A senhora viu e chamou sua neta. Falou para ela não tomar nada de mão de mendigo, principalmente pessoa negra porque todos os negros não prestavam e tinham muita doença. A sua neta ficou assustada, me olhando muito. Nessa hora chegou minha filha chupando um sorvete e me ofereceu. Depois chupou o resto do sorvete. A netinha da senhora viu e falou para a avó: "olha lá a menina vai pegar doença do mendigo negro...". A senhora chamou minha filha e perguntou se ela me conhecia. Minha filha falou que eu era o pai dela com muito orgulho e perguntou se ela tinha alguma coisa contra.

    A senhora ficou muito chateada e veio me pedir desculpas. Como eu já estava acostumado com essas coisas, não me importei com a situação.

    Passaram-se duas semanas e a senhora morreu de infarto. Quem fez seu velório foi um negro. Coitada dela.

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