sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

AS CABRAS DO PADRE (I)

O livro do padre (Arquivo Leandro)

            Na avenida Yperoig, em Ubatuba, tem ainda hoje uma casa diferente, que até bem pouco tempo se destacava muito das demais do entorno. Desde bem novo o meu olhar era atraído por ela, pelo seu telhado tão inclinado. Muitos anos depois eu soube que aquela era a casa paroquial, do tempo do padre Johannes Beil, o padre João, que na década de 1940 era o responsável pela evangelização desse território caiçara. Ali, na área da casa, onde hoje é a avenida, funcionava a serraria para beneficiar caxeta. Sua madeira era destinada à fabricação de lápis e de tamanco. Isso mesmo! Não havia ainda chinelos como hoje!

           Padre João, além de servir à evangelização, também era preocupado com a saúde do povo. Notava que faltava ao povo do lugar uma fonte de proteína permanente. Assim pensou na criação de cabras. Mas como conseguir os animais?

           O amigo Leandro, garimpador de tesouros em documentos, com a ajuda de um alfarrabista digital, localizou o livro escrito pelo padre João, na Alemanha. O empenho agora está em traduzir para saber do conteúdo que ali se encontra. Faz me recordar de outro alemão (Hans Staden) que passou por aqui e depois, na sua terra, registrou a sua convivência com os tupinambás. Quatrocentos anos separam os dois representantes germânicos ligados em igual tarefa: dar a conhecer as nossas raízes, o nosso povo, o nosso lugar. 

           Hoje, transcrevo uma parte enviada dias desses pelo Leandro: 


Um dia de muita emoção em Ubatuba. Adhemar de Barros, presidente (governador) do estado de São Paulo, havia se anunciado para lançar a pedra fundamental do novo porto. Com uma comitiva grande, ele deveria chegar em um navio a vapor da Lloyd Brasileiro. Todos os pescadores e proprietários de barcos foram convidados a decorar suas embarcações e a aparecer na entrada do porto naquela manhã para cumprimentar o Presidente. Mudei a missa da hora das laudes [primeira oração do dia] para as seis horas, mas imagine a minha surpresa quando saí da igreja e vi o navio entrando na baía. Toda Ubatuba ainda estava dormindo e ninguém, muito menos um barco, podia ser visto navegando. Senti vergonha dos moradores e pulei no meu barco sinalizado; com determinação dirigi em direção ao navio e fiz várias rodadas para cumprimentar os convidados. (Como tinha que ser feito muito rapidamente, eu precisava guardar minha batina, que normalmente nunca usava no barco por causa da água salgada que estragaria tudo). 

Adhemar ficou no convés com sua esposa, Dona Leonor, e a comitiva acenou para mim. Sua primeira fala em terra se dirigiu ao padre, que foi o primeiro a cumprimentá-lo lá fora. "Este é o nosso pastor" (...) Conduzi os convidados pela igreja e mostrei a eles as belas e antigas obras de artes que, finalmente, encontraram seus admiradores. O senhor Félix Guisard, um grande industrial de Taubaté, deu um banquete para cerca de 100 pessoas, Também fui convidado, mas tentei não chamar muito a atenção, se possível. Dr. Adhemar, no entanto, imediatamente instruiu para que me colocassem na frente dele, porque queria falar comigo. Sua primeira pergunta: "De onde você é?". Minha resposta: "De Berlim". Ele exclamou com entusiasmo: "Esta é uma cidade linda! Eu estudei lá com o professor Sauerbruch". [chefe da cirurgia em Charité, em Berlim]. O governador era médico e falava alemão fluentemente. Durante toda a refeição, ele só falava comigo em alemão. Isso foi muito embaraçoso para mim. Tentei várias vezes mudar para português, pois os anfitriões, senhor Guisard e sua esposa, que estavam sentados ao seu lado, não entendiam uma palavra, mas o governador não se sentia nem um pouco incomodado. De repente ele disse: "Até agora você não fez nenhum pedido. Onde quer que eu vá, os padres sempre precisam de algo. Você não precisa de nada?". Fiquei surpreso com a oferta e tive de pensar por um tempo. Então eu disse: "Preciso de cabras".



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