sábado, 5 de dezembro de 2020

O MENINO DO RANCHO

"Flor de treporeba, meu filho!" (Arquivo JRS)

      Estou lendo Cadernos de  Águas ou As marés de histórias, do talentoso Santiago Bernardes. Me parece que é adequado, nas imposições da vida que assumimos, enxergar como esse menino que viu o mundo pela primeira vez do rancho do jundu. Até imagino aquela visão da Barra Seca, olhando agora de minha janela, o tempo garoento.

      Logo no começo da obra, o Santiago me rememorou de coisas ruins acontecidas ao nosso povo caiçara. Seo Genésio me contou um dia da enxurrada de barro descida da abertura da estrada (BR 101) que acabou com as ostras do rio do Camburi. Priscila registrou todas as crueldades em seu Genocídio caiçara. Vanda Maldonado, Antônio de Jesus e tantas outras pessoas resistiram em Trindade contra os arautos da especulação imobiliária que ainda segue destruindo a terra, o mar e nós. 

    Santiago é como João, o canoeiro de almas que sabia histórias porque tinha visto. "Tantas quanto as ilhas. Histórias que iam e vinham nas ondas". Ele nos oferta com muita vida tudo o que aparece em suas páginas. Ele enxerga as histórias e aprende muito com elas. "De vez em quando alguém as recolhia nas malhas da rede do acaso. Ou da sabedoria". Santiago Bernardes é um desses alguém! Tenhamos todos a atenção nas falas que nos rodeiam e sigamos em nossas marés de histórias. Agora, acompanhado de um canto de sabiá-galinha no pé de carambola, transcrevo uma parte do Caderno de Águas:

    

     Foi um tempo de aflição, os trovões explodindo entradas nas rochas, os longos roncos dos estômagos  dos tratores comendo pedras, árvores, rios, mata adentro noite afora. As águas das nascentes das serras correndo par o mar sangradas de barro, sem poder beber. Crianças correram esconder-se do fim do mundo embaixo das camas de pau com esteiras de taboas, velhos oraram desolados juntando as mãos em frente a uma vela oscilante na madrugada, telhados de sapé e plantações queimaram. Soltaram bois nos roçados. E documentos nos cartórios. Com palavras dissimuladas. Os bois comeram as roças. Os documentos comeram as posses. Foi o tempo da perdição do mundo! Depois veio o tempo da migração! Do vagar sem rumo, do trocar-se por um canto qualquer de sono, por um trato de jardim murado. Tempo de desordenação das coisas e dos pensamentos.


    Neste tempo de Advento celebrado, sobretudo na religiosidade popular, tendo Jesus como uma das muitas pessoas que buscaram a utopia de fazer um mundo melhor, nos voltemos ao menino do abrigo das canoas, no jundu. Espero que mais gente aprecie as obras de Santiago Bernardes, atue nas melhores lutas do nosso povo e  não deixe de se importar com aqueles que "nem viram uma estrela que se inclinava de passagem sobre o horizonte e as ilhas, parecendo tocar a ponta do telhado do rancho nesse momento, tão breve quanto o existir dos seres". Sucesso, irmão, é o que lhe desejo.   

Um comentário:

  1. Saudações irmão! As histórias que o tempo escreve, pelas praias, ruas e caminhos da velha e nova Ubatuba... Que tenhamos a força e a persistência dos antigos na luta pela permanência de nossa cultura.

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