terça-feira, 24 de abril de 2012

LENTIDÃO



 Tenho o prazer de repassar aos leitores do blog uma apreciação cultural do Eduardo de Souza publicado pel'O Guaruçá.

Lentidão. Esta palavra me ocorreu ao ler o texto Retrato de família, do José Ronaldo dos Santos. O Zé nos fala dessas duas culturas que correm (corriam?) como dois rios distintos e lentos, mas que brotaram da mesma nascente: a religião católica apostólica romana. O caipira é o caiçara sem o mar. O Zé tem uma caudalosa memória. Muitas histórias para nos contar. É perspicaz em retratar a essência da nossa gente.
Ter histórias para contar e a palavra lentidão me levaram ao romancista tcheco Milan Kundera que diz que o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória, e que o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento. Diz ainda, no livro A Lentidão, que quando as coisas acontecem rápido demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo, e que nossa época se entrega ao demônio da velocidade e é por essa razão que se esquece tão facilmente de si mesma.
A lentidão tem um vínculo com a memória. Nos meus tempos de criança a vida não tinha a velocidade dos tempos atuais. Por isso, eu e os de minha geração temos tantas lembranças. A vida não tinha pressa. Tivemos tempo de armazenar saudades, de gravar indelevelmente nas nossas almas o modo de ser caiçara-caipira.
Lembranças dos tempos em que as distâncias eram percorridas a pé, a cavalo, a canoa ou a barco. E quem caminha ou percorre as distâncias nesses meios vagarosos de locomoção, tendo alguma companhia, tem tempo de prosear despreocupadamente, de conhecer melhor o companheiro e, estando só, proseia com Deus e aprecia a paisagem criada por Ele.
Se hoje, ao passar por algum lugar na hora do almoço e sentir, vindo de alguma casa, o cheiro do alho e da cebola dourando numa panela para temperar o feijão, transporto-me subitamente à cozinha de minha avó Maria, à beira do fogão a lenha, onde quase sempre a encontrava. Cozinhar à lenha exigia todo um ritual, só possível naqueles tempos sem sofreguidões. Naqueles tempos havia tempo para ser avó, mãe, tia e educar os filhos, netos, sobrinhos e afilhados. E havia tempo para cantar e ouvir histórias. E a leitura do tempo era feita pelo caminhar lento do sol ou pelas badaladas compassadas do sino da igreja. O sino do Ângelus, o cair da noite... O galo no terreiro, o amanhecer do dia. Tempo não era dinheiro. O tempo se contava por eventos. Talvez por isso o passado fosse tão presente às pessoas, e o futuro... Bem, o futuro a Deus pertencia.
A velocidade não permite contemplações, armazenar lembranças nos escaninhos da alma. Naqueles tempos, a vida ainda não fora reduzida ao político e ao econômico e a essas ansiedades que nos fazem devorar delirantemente o tempo, com tanta pressa, com tantas ocupações: o corpo perfeito e admirável, a saúde perfeita, as diversões, os modismos, as novidades. Talvez tudo isso seja uma maneira de não ver que não passamos de andarilhos neste vale de lágrimas e que tudo tem seu próprio tempo.

Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto é caiçara, 58, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba e urbi et orbi

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