sexta-feira, 20 de agosto de 2021

LUGAR DE FALA

 

Capa do livro - Arquivo JRS

    Seo Miguel apareceu bem cedo, veio buscar uns livros para estudar. Que disposição! Voltou a estudar aos sessenta anos, está no Ensino Médio. Ele, cidadão negro caiçara, é  funcionário em um setor público, na Secretaria da Saúde. Agora ele busca reforçar o seu lugar de fala, quer ser sujeito político mais decisivo e incisivo nesta realidade nossa, de beira mar, que tanta gente atrai.

   Certamente que, com novas leituras, ele será capaz de entender tantos autores e autoras da resistência negra. Ele, Miguel, também é um resistente. Na próxima vez, na primeira oportunidade que aparecer, direi a ele da maranhense Maria Firmina de Jesus que viveu entre 1825 e 1917. Apresentarei a ele o livro Úrsula, publicado em 1859, mas mantido por tanto tempo sob véu de esquecimento proposital porque, além de mulher,  era negra, filha de mulher branca e pai preto. Ou  seja, era duplamente discriminada. Só faltava ser escrava.

   Alfabetizada e inteligente, Maria Firmina, em 1847, prestou prova e passou a trabalhar como professora primária. Conta a história que, em 1880, ela fundou a primeira escola mista do país. Só que, pela mentalidade da época,  a sua iniciativa, foi um grande escândalo. Assim, dois anos depois foi fechada

   No romance dessa mulher maravilhosa, logo no início, um homem branco cai do cavalo. Quem o encontra e lhe salva vida é um homem preto. Reis, em seus estudos, escreveu : “É o homem branco que deveria cair do alto do seu cavalo para poder encontrar a humanidade que seus contemporâneos e antepassados usurparam de si e do outro”. Triste espólio da escravização dos negros! 

   Ah, Miguel! Acho que ainda falta muito para conhecermos muita gente boa e suas contribuições! Imagine quantas e quantos temos de encontrar! Desde que o mundo é mundo, as diferentes formas de resistência existem. Só que havia  - e ainda há! – falta de visibilidade.

  Apagar alguém, perseguir, excluir, desmerecer, discriminar etc... Que histórias não deixaram de ser contadas? Ainda bem que, as diversas formas de resistência seguem pesquisando, revelando tesouros para reforçarem lugares  de falas das minorias da sociedade brasileira. Há 162 anos  vinha ao mundo Úrsula, o livro! Sabe o que significava ser a primeira mulher negra, naquele contexto,  a publicar uma obra literária no Brasil daquele tempo?

   Por fim, até imagino o Seo Miguel exclamando: “Mas que mulher corajosa!”.


3 comentários:

  1. A propósito, Zé, a revista Juçara (online) acaba de lançar a 3a. edição com homenagem à Maria Carolina de Jesus. Vale a pena conferir.Segue aqui o link para você ler a 3a edição da Revista Juçara: is.gd/jucara3

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  2. Troquei o nome da escritora Carolina Maria de Jesus.

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