domingo, 29 de agosto de 2021

CAMINHO DE PEREGRINAÇÃO


 
Puxada de rede no Itaguá - Imagem: Emílio Campi

     A imagem feita pelo saudoso Emílio Campi Neto, meu colega de infância no Perequê-mirim, mostra a labuta de pescaria por puxada de rede num ponto intermediário entre os cantos do Acaraú e a barra do rio grande de Ubatuba, bem próximo da Barra da Lagoa, na praia do Itaguá.  Atenção ao detalhe: uma pescadora no mesmo esforço dos companheiros. Junto ao grupo de caiçaras, gaivotas e garças esperam seu quinhão. É uma imagem do início da década de 1980, quando Aládio Teixeira Leite, seu primo Florindo, Otávio e outros tiravam dali o seu sustento. Quantas vezes eu me demorei apreciando o trabalho dessa gente!?!


    O mar atrai. Aprendemos que, nas crenças dos povos originários, o mar era buscado por estar "a um passo" da Terra sem Males, o paraíso do sol. Era por cima dele, despontando do leste, que o Todo Poderoso aparecia. Nossa costa brasileira era o primeiro lugar que ele, Deus-Sol, queria ver assim que acordava. Portanto, era natural afluir à costa  esses povos.


     No inventário de Domingos Dias Félix, feito em Taubaté, em 1660, constava que "da serra da Amantiquira, o selvagem, atravessando o bairro do Tataúva, o rio Paraiba, o Aguassai, ganhava a Taba Etê. Dali seguia para o Poracê, a Baraceia de hoje. Galgava o Samambaia, atingindo o 'carreiro das antas', caminho do mar de Ubatyba. Atravessando o Paraitinga, e mais adiante o Paraibuna, passava o sopé do Corcovado, que se bifurca, à direita, para Maranduba, e, à esquerda, para a Serra Velha e Ubatyba". Pois é! O caminho que atualmente passa por São Luiz do Paraitinga só mais tarde foi aberto, isto é, depois de 1686, quando as sesmarias perdidas por Mateus Vieira da Cunha e João Sobrinho de Morais foram concedidas ao capitão-mor de Taubaté, Felipe Carneiro de Alcaçouva e Sousa. Esta informação é de Félix Guisard Filho. 


         A que povo indígena está se referindo o inventário?  Quem dá-nos pista aqui é Daniel Mundukuru, em seu livro Vozes Ancestrais: "Os Krenak, conhecidos também como Aimorés, autodenominam-se Kren, que significa 'povo, gente, pessoa'. Estão espalhados pelos estados de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. Originalmente habitavam a Mata Atlântica. Tem-se notícia de sua presença nessa região desde o século XVI. É certo que sua população era bem grande, mas no Censo 2010 foram registrados 594 representantes desse povo".


        Faço questão de algumas observações, alguns questionamentos:

 1- De Domingos Dias deriva o nome de uma praia em Ubatuba. Só que foi transformada, por falha de transcrição, em Domingas Dias. "Tomou, papudo! Depois de morto virou mulher!", exclamava de vez em quando o Nhonhô Armiro.  Logo, o homem que se apoderou da referida área era poderoso, pois deixou inventário. 

2- As terras de Cunha, o município vizinho ao noroeste de Ubatuba, foi dado primeiro a Mateus Vieira da Cunha? 

3- Andavam muito, vinham de longe os indígenas para a adoração do sol sobre o mar. Atravessar serras e rios fazia parte do caminho de peregrinação deles. Podemos dizer que eram praticantes de turismo religioso, onde renovavam a esperança numa Terra sem Males? Ou eram turistas a passar um tempo pescando e se deliciando nas praias de Ubatuba? De uma coisa eu não tenho dúvida: eles voltavam com cargas de peixes moqueados. 

4- Se apoiando no texto do Daniel Munduruku, podemos afirmar que o esforço empreendido pelo grupo originário, em ver o mar de tempos em tempos, era saudade de uma convivência antiga, de um território perdido, tal como fazem ainda hoje os meus parentes que foram enxotados para os sertões?

7 comentários:

  1. Ubatuba já atraía turistas desde tempos antigos.

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  2. Isso mesmo! Era a beleza que se somava à devoção ao Sol.

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  3. É triste e interessante para estudos o quanto as pescadoras foram ignoradas na história de Ubatuba. Pois, ainda que as mulheres dizem alguns serviços que os homens não faziam, pelo testemunho da caiçaras mais velhas, todo o resto era dividido: a roça, a pesca, os cuidados com redes e canoas... E, no entanto, quando se fala de pesca, é como se só houvesse o pescador...
    Parabéns pela imagem que ajuda desmistificar essa ilusão.

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    1. Eu me lembro bem dessa pescadora. As filhas do Peralta, em Sete Fontes, pescavam demais. Outra mulher que pescava muito antigamente era a Chica Cruz, na Santa Rita. Hoje, há algumas pescadoras de garoupa no Camburi, na divisa com Paraty. Vale um trabalho acadêmico, pois em nossas memórias elas continuarão!

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  4. Emociono com suas memórias e estudos da terra dos ubás.
    Deus te abençoe seminino .
    Precisamos de mais mestres e pessoas como você.

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  5. Muito bom, Zé, e assim seu blog ajuda a ligar os fios soltos da história.

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