sexta-feira, 27 de novembro de 2020

ACHO BONITO, MAS NÃO CUIDO DE GERÂNIOS

Gerânio vermelho (Arquivo JRS)

          Odócia, caiçara, gente da Maria Jacinta, mulher forte da praia Brava do Frade (ou praia do Simão), era mulher que não parava, sempre tinha uma ocupação esperando pela outra. Pescava, tirava marisco da costeira, plantava mandioca, fazia farinha... Só não se entretinha com jardim. Duas  ou três espécies de ervas, dessas de tempero, sobreviviam num cercado de pedra, perto da porta da cozinha. O resto do terreiro era barro limpo, do tipo em que água faz caminho. Umas margaridas, umas açucenas e uma roseira junto à parede da casa de farinha eram os únicos atrativos florindo regularmente, mas quem cuidava delas era o Aristeu, seu marido. Certa vez, passando pela estrada das Galhetas, na beira do mato avistei um pé de gerânio jogado. "O dó. Parece que acabou de ser arrancado. Vou levar para o Odócia". Assim que cheguei na casa deles, fui logo perguntando onde eu poderia plantar. O Aristeu, levando uma enxada, foi comigo até o lugar da roseira e ali ficou bonito o gerânio vermelho. "Você já viu que quem cuida de flores em volta da casa sou eu, né?". Eu respondi que já tinha percebido isso. "Sim, até este dia de hoje, eu ainda não tinha encontrado uma mulher que não gostasse de cultivar um jardim, de encher o terreiro com todo tipo de flores e folhagens. Odócia é a primeira".  Foi quando ele me contou o seguinte:

        "Quando ela era criança, assim ela própria me contou, o lugar onde a família morava, lá no alto do Simão, em volta da casa e pelos caminhos tinha muitas flores, de todo tipo. Todo mundo da casa dela se empenhava em zelar pelas plantas. Mas um dia, a sua vó, limpando um pé de jasmim, foi picada por uma jararaca e morreu em pouco tempo, sem nem ter podido ser acudida. Desse dia em diante a Odócia nunca mais cuidou de flores. Até aquele coentro, aquela alfavaca e outros temperos dali, que ela usa na comida, se não fosse eu estar zelando de vez em quando também não existiriam. Ela ficou afetada com a morte da vó. Foi o que mudou o jeito dela com flores. Eu entendo a razão. Eu a compreendo. Pode ver quem nem vasos de flores temos aqui".

        Depois da estimada Odócia, que morreu na costeira enquanto tirava marisco com a sua prima Dirce, conheci outras mulheres que não se entretinham com plantas, com jardim. Hoje, então, devido a outras preocupações e por falta de espaço, muitas casas nem jardim possuem. No meu quintal, entre as minhas queridas flores não tem gerânio. Acho as suas flores lindas, mas me recuso cultivá-lo na minha proximidade em memória de Odócia que morreu jogada pelo mar contra as pedras repletas de cracas e pindás. Prefiro ficar apenas com a imagem daquela planta resgatada por mim, daquele gerânio vermelho que o estimado Aristeu cultivou com tanta devoção até o fim da vida em memória da sua amada. Me recuso a cuidar de gerânios por isso.

Um comentário:

  1. Mais um texto que nos remete ao lugar especial do passado... Sinto saudades até durante a leitura, obrigada por me deixar saudosa de situações que não vivi....

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