segunda-feira, 26 de abril de 2021

A ASSOMBRAÇÃO DO CRISTÓVÃO

 

Praia Grande, por volta de 1977 (Arquivo Ubatuba)

        "Fazenda boa. Dá uma linda calça! É mescla, pano duro". Isaías, o alfaiate garantiu. Como era gente de confiança, Bito Cristóvão encomendou a roupa que seria usada no casamento do primo, morador no centro da cidade. Maio estava chegando.

      Dito e feito! Trabalho perfeito, no prazo combinado, uma semana antes de evento tão esperado. Até veio de ônibus para chegar "nos conformes". Depois da missa, os festejos e a comidoria. "Você nem imagina o tanto de gente que foi!".

     Festa boa é assim: quase atravessa a noite. "E agora para voltar para casa? ". Bito Cristóvão era caiçara das Toninhas, distante seis ou sete quilômetros da cidade. O negócio era ir a pé como fazia sempre. Até o bairro do Tenório, ele tinha a companhia do parceiro de festa, do primo Élvio, rapaz novo, filho da prima Celeste . Depois seguiria sozinho. 

    Os dois foram tagarelando, nem viram o tempo passar. Só notavam, vez ou outra, os pios de corujas pelas árvores do jundu. O baile era o assunto principal, cada um afirmando que dançara mais do que o outro. Não entravam num consenso, mas Bito Cristóvão tinha certeza que aquela calça nova fizera diferença. Só que, para caminhar longas, distâncias não era vantagem, pano duro demais. Quase teve a iniciativa de tirá-la para evitar assadura entre as pernas, mas se sentia muito orgulhoso de tal vestimenta ainda que fosse noite escura, sem ninguém pelos caminhos. E assim andou toda aquela lonjura vestido nela.

  Chegou à travessia da praia Grande. Agora sem o Élvio. Sozinho teria que passar, na escuridão, quase a metade da viagem. Ainda havia histórias de lugar mal-assombrado. E ele sentia medo de tantas  coisas que falavam. De repente, na calmaria das ondas, além de sentir o coração disparado, ainda escutou um poc-poc-poc. Se arrepiou, mas parou para ver se tinha alguma coisa ou alguém lhe seguindo. Nada. Retornou a andar e novamente o barulho, como se seguissem. Parava e tudo sossegava. Se virava e nada de nada na escuridão da noite. Andava e escutava; parava e nada de diferente em volta. Apressava o passo tremendo de medo; o barulho também acelerava. Corria. A coisa corria atrás. Com o coração na mão, desesperado chegou em casa  sem saber como, no canto direito das Toninhas. Estava todo assado por baixo. No dia seguinte contou aos seus da assombração. Gertrudes gargalhou. "Que corajoso o meu primo! Não sabeis que pano duro faz barulho mesmo? Era a mescla das pernas da calça nova que lixava uma na outra. Isso era a vossa assombração!". Não teve quem não caísse na risada e não contasse para mais gente. Assim essa história chegou até aqui.

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