sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A ILHA DE ONTEM E DO DIA SEGUINTE (III)





Ilha Anchieta - Porto do Presídio - Imagem da internet (guiaviajamelhor.com.br)




    Encerrando o triste ano de 2021 (aos brasileiros que precisaram aturar o pior governante de toda a sua história), eu continuo, me baseando no já citado trabalho do amigo Peter , a discorrer sobre a Ilha Anchieta, outrora Ilha dos Porcos, a uma pessoa que pretende conhecê-la. Ah! Porcos e Portos podem bem ser a mesma coisa: corruptelas. 


   Era natural aos navegadores dos tempos antigos nomear os lugares primeiramente pensando em suas necessidades/utilidades, em portos onde pudessem se provisionar e continuar viagem. 


No relato de uma professora primária, que viveu na Ilha Anchieta entre 1945 e 1948, é feita uma referência curiosa ao motivo da denominação Ilha dos Porcos: Quando menina estudava geografia de São Paulo e a Ilha dos Porcos me chamou a atenção, por causa do nome estranho. Mal sabia eu, que anos e anos se passariam e o meu primeiro emprego como professora seria justamente na antiga Ilha dos Porcos, hoje denominada Ilha Anchieta. Porcos! Por que se chamava assim essa famosa Ilha? Porque havia porcos catetos em grande quantidade vivendo nela. Não porcos domésticos, mas catetos, porcos selvagens, magníficos e perigosos. O cateto é chamado porco-do-mato brasileiro, mas não é da família do porco, porque só tem três dedos nas patas de trás. O que caracteriza esse animal é o colar de grossos pelos brancos, que rodeia seu pescoço. Em 1947 o último cateto da Ilha Anchieta foi abatido e eu tive o privilégio de comer um pedacinho de sua saborosa carne (DAS NEVES, 2012: p.67).


   Logo penso o quão estranho foi levar para lá as capivaras e outras espécies recentemente (março de 1983 - 159 animais). Que especialista da Fundação Parque Zoológico orientou tal medida para um local sem rios significativos? O resultado foi a travessia do mar pelas capivaras, a fuga para o continente devido à lei da sobrevivência. 


  Antes da extinção do último cateto, os caiçaras-ilhéus foram despejados daquele lugar. Continuando no texto acadêmico, ficamos sabendo:


Após a escolha daquela Ilha para a construção da colônia correcional, já se inicia com a expulsão total, entre os anos de 1905 e 1906, dos 145 habitantes que naquele momento viviam da pesca e da agricultura de subsistência na Ilha Anchieta. No total foram desapropriados 92 “outorgantes” e suas benfeitorias, entre elas: edificações, terras, plantações, canaviais, cafezais, pomares, e, curiosamente, pelo menos 35 coqueiros.


A partir dos anos 1920, sucedem-se na Ilha Anchieta várias atividades estranhas, tais como um posto de quarentena para gado e, em 1926, cerca de dois mil imigrantes “russos” ficaram na “hospedaria de imigrantes” da Ilha. Destes milhares de bessarábios, cerca de 150 morreram envenenados pela ingestão de “mandioca brava” (DE OLIVEIRA, 1977: p.88-89).


   Também recomendo o livro Corações Sujos, de Fernando Morais, onde aborda um grupo organizado de japoneses que não aceitavam a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e acabaram presos na Ilha Anchieta por cometerem crimes a compatriotas nipônicos.

   
   Por fim, em março de 1977, é criado o Parque Estadual da Ilha Anchieta (somente a área terrestre) e em 1980-1983, o Polígono de Interdição à Pesca. Assim, por essa interferência arbitrária e a sistêmica prevaricação do Estado, foram sempre os caiçaras que saíram perdendo com essas sucessivas intervenções. Expropriados de sua história, de suas terras e de seus territórios pesqueiros localizados na Ilha Anchieta, os caiçaras locais perdem sua identidade sociocultural, perdem seu modo de vida tradicional, perdem seu sustento, perdem sua arte pesqueira e, ainda hoje, continuam aviltados, mas historicamente resistindo.


   Agora, quando estiver pisando no chão da Ilha Anchieta, pense em tudo isso e saiba que a melhor atitude, a grande prova de amor à cultura e à natureza, é ser resistência às estratégias neoliberais que vão se manifestando sobre todo o nosso território caiçara. Que em 2022 nós possamos apoiar/participar em grupos organizados da nossa sociedade que lutam para barrar as medidas que apenas privilegiam uns poucos e negam cidadania à maioria das pessoas. A Ilha do Dia Seguinte não pode ser danosa à nossa cultura!

Referência: Németh, Peter Santos. A tradição pesqueira caiçara dos mares da Ilha Anchieta: a interdição dos territórios pesqueiros ancestrais e a reprodução sociocultural local - São Paulo, 2016.

2 comentários:

  1. Exatamente prof. José Ronaldo. Ali na Ilha existe um universo muito mais grandioso e complexo do q um simplório presídio.

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    1. Que vontade de ter as condições para estudar mais e mais tudo isso! Abração, Peter.

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