quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

AS ÁGUAS SAGRADAS (III)

 

Boias de mexilhão na Prainha - Arquivo JRS

        Nesta última parte, o Roberto Ferrero, descendente de duas  guerreiras caiçaras por nomes de Judith, relaciona as saúvas à nossa história de exploração, de negação cultural, de destruição ambiental pelas décadas, desde a chegada de um modelo de turismo no nosso lugar. O que permaneceu, mesmo em pequenas porções, ilhas aqui, ali e acolá, é o que vai se constituindo em resistência. Valeu, irmão!


      Ao final de um ano da partida das saúvas, a produção local era tão grande e o rio do Destacamento tão pequeno que as canoas não estavam mais dando conta de escoar todos aqueles mantimentos, de modo que todos comemoraram a promessa de que, muito em breve, uma nova e asfaltada estrada cortaria a comunidade e a ligaria até Ubatuba. Mal a notícia alcançou as Istoninhas, apareceram os primeiros grileiros pelo Perequê-mirim, se apropriando de tudo quanto era pedaço de terra. Nem o cimentado do João Profeta se safou, aproveitaram a sólida estrutura e construíram um hotel no lugar. E assim foram embora a pé os primeiros caiçaras daquele lugar, encheram caixotes com comida e dinheiro e foram morar em outros cantos. Sumiram feito saúva, mas sem a promessa de chuva dessa vez. Cada dia que passava, uma nova pessoa era convencida de que estava vivendo na terra de terceiros, e,envergonhada, se retirava.

                Quando a estrada chegou, a produção local já era tão pouca que poderia ser levada na mão em sacolas. Ao contrário do que se comemorou, a estrada trouxe mais coisas do que escoou. Porque gente não é coisa. E foi gente que foi embora por ela. A estrada trouxe foi o primeiro rolo de arame farpado que viram na vida. Sem entender aquele espinhento pedaço de metal, muitos se perguntaram se deveriam começar a se preocupar com os costumes da gente de fora, enquanto alguns comemoravam ser essa a solução para manter a raposa longe do galinheiro.

                Não demorou muito e o Rio do Destacamento foi finalmente canalizado e escondido em tubulações de concreto, pois o seu cintilante leito não combinava com as quadras planejadas. O último fabriqueiro do lugar vendeu seu último enxó, porque já ninguém queria uma viola cavucada, armário de tábua e nem arrumar uma canoa. Nem colher de pau e tramela usavam mais. A gente de fora tinha outros gostos. Foi mais ou menos quando o último mandiocal deu lugar a um condomínio, lá pelo meio da praia. Nem os cajueiros do Seu Vitorino foram poupados, e nem um dos tantos que brotaram por graça que costumava fazer.

                Após alguns poucos anos, a última benzedeira se foi, levando consigo uma série de mazelas. Nunca mais ninguém teve cobreiro, tripa virada ou mal olhado. Nem ninguém mais ficou encantado. Porque essas eram ocorrências específicas de diagnóstico e trato do benzimento. Também as roseiras, outrora vorazmente atacadas pela saúva, floriam em paz. Mas já não havia na comunidade versistas ou violeiros para fazer poesia, e em pouco tempo, os poucos caiçaras que restaram ali deixaram de plantá-las por terem esquecido de como eram bonitas. E por falar em flores, foi esse o fim da última canoa da Enseada, virou floreira em casa de veraneio. Não tão longe do último remo, que virou escora de varal. A penúltima canoa, uma pequenina, foi tirado o bordo e virou prancha de surf. O derradeiro tacho de forneá farinha foi trocado num radinho de pilha.

                Setenta e três anos mais tarde, findou a empreitada da saúva. Ao retornarem para casa ficaram espantadas sem entender direito onde estavam. Não reconheciam mais ninguém. Ficaram um tempo sentadas na tubulação que cuspia água do rio, que nem nome mais tinha, olhando o mar tentando calcular quanto tempo estiveram fora. Incomodadas com o cheiro de esgoto e a fome, separaram-se em grupos e cada qual foi para uma região, da Ribeira até as Toninhas. E depois mais longe, da cidade até o pontão da Fortaleza... não encontraram sequer um pé de mandioca para roer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário