quinta-feira, 9 de setembro de 2021

CANTORIA RENTE AO MAR

 

A Bandeira do Divino na Enseada - Arquivo Caiçaras



Biro Biro era só alegria,

Representando a família dali,

Daquele recanto caiçara,

Depois da Prainha do Canto do Góis.

O pessoal se deslocou,

À devoção de quem convidou.


Aqueles caminhos,

Aquelas canoas,

Aquele pessoal:

A nossa obrigação-devoção.

A Bandeira, de cor quente,

Abriu caminho da gente.


Fez-me lembrar da música:

"A Bandeira segue em frente,

Atrás de melhores dias".

A cor é forte e sempre foi.

A cantoria emociona desde o mar,

"Gente do Paru: no ano  próximo ELA voltará"


        

terça-feira, 7 de setembro de 2021

MINHAS RAÍZES E UM SONHO

 

Minha homenagem ao vovô Estevan (Aqruivo JRS)

Uma parte de mim veio lá das bandas da Caçandoca e Pulso.

    De vez em quando me perguntam se eu sou quilombola da Caçandoca. Afinal, lá está a minha raiz por parte de pai. A seguir, uma breve explicação de minhas origens.

 

1- Leonardo Lopes dos Santos foi casado com Thereza Engrácia de Oliveira (ou Thereza Gonçalves de Jesus).

2- Fabiano Lopes dos Santos, filho do casal acima, se tornou marido de Zulmira Joaquina Cabral. Ele, cujos irmãos eram Manoel, Miguel, Maria Thereza, Ana, Francisca, Verônica, Benedita e Terezinha, faleceu em 25/02/1950, na praia do Pulso. 

3- De Fabiano e Zulmira, nasceram sete filhos, dentre eles, a vovó Martinha Lopes dos Santos (ou Martinha Zulmira Cabral). Minha bisavó Zulmira faleceu em 09/03/1970, no bairro da Estufa. Eu a conheci poucos tempo antes, quando fomos - papai, mamãe e filhos -  lhe fazer uma visita.

4- Leovigildo Félix dos Santos, um dos oito filhos de Estevan Félix dos Santos e Martinha, foi casado com Laurentina Francisca de Jesus, nascida na praia da Fortaleza. Tiveram seis filhos: Ana, eu, Domingos, Jairo, Clóvis e Wagner).

5- Eu (José Ronaldo dos Santos)  e Gláucia Aparecida Batista dos Santos, somos os pais de Maria Eugênia e Estevan José.

6- Francisco Félix dos Santos, meu bisavô paterno, pai do vô Estevan, adquirente de “uma parte da Fazenda Cassandoca”, faleceu no dia 20/02/1919, na Caçandoca. Vítima da gripe espanhola, diziam. A esposa Anna faleceu antes. Vovô Estevan, nasceu em 15/02/1908, na Caçandoca, e faleceu no bairro da Estufa, em 20/01/1990.

7- Joaquina Brandina de Amorim, minha tataravó, mãe de Anna de Amorim, e esposa de Francisco Aleixo Cabral, faleceu em 02/10/1932, na praia do Pulso. Era filha de Joaquim José de Amorim, o dono das terras da praia do Pulso.

8- Joaquim José de Amorim, comprador do Pulso, foi casado com Brandina Amorim. Uma de suas filhas, Joaquina Brandina Amorim, irmã de Anna de Amorim, minha tataravó, foi casada com Francisco Aleixo Cabral, aquele que criava cabras na Ilha da Maranduba.

9- Joaquina Brandina Amorim e Francisco Aleixo foram os pais da minha bisavó Zulmira Brandina Amorim e de outros filhos: Eliza, Izabel, Maria, Sebastião, Gerôncio e mais uma menina que morreu criança.

10- Zulmira foi casada com Fabiano Lopes dos Santos e tiveram os seguintes filhos: Sebastiana, Martinha (vovó), Anastácia, Geraldo, Luiza, Appolônia e Thereza. Outras três morreram crianças.

11- Os meus tataravós Francisco Félix e Anna de Amorim (ou Anna Maria da Conceição) tiveram dois filhos e duas filhas: Leopoldo, Estevan, Alzira e Eugênia.

12- Estevan e Martinha, meus avós paternos, tiveram oito filhos: Antônio. Francisco, Lúcio, Leovigildo (meu pai), Aristides, Benedito, Manoel e Sebastião.

13- Tia Apollônia explicou um dia que, após o falecimento de Anna de Amorim, os filhos desta, que viviam sem os devidos cuidados, foram levados para viverem na praia do Pulso, na casa da tia deles, Joaquina Brandina Amorim, esposa de Francisco Aleixo Cabral, um dos meus tataravós paternos.

14- Resumindo tudo: todos esses familiares moravam na Caçandoca e Pulso, duas praias na porção norte do município de Ubatuba.

15- Em relação às terras onde esses familiares moravam, um documento registrado logo após a Lei de Terras (1850), em 1855, diz que “Francisco Alves Granadeiro possue uma sorte de terras na praia da Cassandoca contendo mil braças mais ou menos, os quais partem de hum lado com terras de Raimundo José de Meneses Froes”.

16- Em 1858, consta que Joaquim José de Amorim adquiriu “uma sorte de terras no logar denominado Praia do Pulso que do lado Norte parte com terras de herdeiros do finado Raimundo José de Meneses e do lado Sul com terras da Fazenda Cassandoca. Transmittente: Francisco Alves Granadeiro e sua mulher Dona Maria Gertrudes de Jesus Granadeiro”. Data da escritura: 09/01/1858. Um pouco depois, em 25/01/1858, é lavrada a escritura de compra da “Fazenda da Cassandoca, o qual compreende a praia do mesmo nome, e, a denominada Cassandoquinha, por onde se limita com as terras dele, comprador, e por outro lado com terras de Joaquim José D’Amorim, e fundos vertentes de Sítio denominado Praia do Pulço, pertencente aquele dito Amorim, a José Antunes de Sá. Vendedores: Francisco Alves Granadeiro e Maria Gertrudes de Jezus Granadeiro”. Esse José Antunes de Sá foi pai de Ezídio Antunes de Sá, o tio Ezildio, esposo da minha tia-avó Luzia, irmã da vovó Martinha. Filhos do casal: Maria, Tobias, Vicente, Catarina, Jorge, Sebastião e Antônio, o meu compadre “Antunes” (que foi esposo da comadre Vitória).

17- Em 1897, no dia 24/11, o meu bisavô Francisco Félix dos Santos, adquire “uma parte da Fazenda Cassandoca”. O vendedor é Francelino Antunes de Sá. Onde seria essa parte? Provavelmente no sertão, onde ele vivia com a família.

   Por toda esta história e de tantos que fizeram suas posses no referido pedaço de chão, desde a Barra da Maranduba até o Canto das Galhetas, eu sempre defendi a criação de um Território Tradicional Caiçara, de usufruto de caiçaras oriundos de tantas famílias que ali se originaram e prosseguiram vivendo por séculos, tendo a natureza com principal aliada. Todos são nossos parentes!

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

ESBANJANDO ALEGRIA ADIANTE

 

Um urubu e seis carcarás  (Arquivo JRS) 

         No meu quintal e pelas minhas andanças, eu vejo e escuto muitos passarinhos. Desde criança nós convivemos nesse mundo de tantas cores e de tantos sons das aves. Muitos nomes eu aprendi com os meus pais e os mais antigos; alguns deles eu já me esqueci porque não os vejo e nem os escuto nas proximidades, mas... certamente estão pelas grimpas dos morros, evitando a nossa civilização que, além de barulhenta, parece não se importar mais em escutar a natureza. Hoje, no poema do mano Mingo, recordamos um velho tarumã, também chamado de taquiuva, onde o tempo todo era festa dos passarinhos, sobretudo quando as suas sementes se avermelhavam e serviam de alimento aos seres alados que enfeitam nossas vidas. Há muito tempo, uma dessas árvores, que ficava no caminho do rio, onde se servia a vovó Eugênia e mais gente,  foi derrubada para, em seu lugar, ser construída uma mansão. Desconfio de uma coisa: tem ano que ela nem é visitada, permanece fechada. Porém, em nossa memória, ali tinha um tarumã que nos encantava e se enchia de passarinhos.


TARUMÃ


Neste dia de sol

Registro numa folha

Do meu caderno de bobagens

As ilustres visitas

Que chegam ao velho tarumã

Defronte à minha janela

Corruíra

Tié

Sanhaço

Periquito

Saíra

Rolinha

Sabiá

Mariquita

Bem-te-vi

Andorinha que faz desfeita

Efetuou um voo rasante

E nem te ligo

Foi esbanjar alegria adiante.


       

domingo, 5 de setembro de 2021

EU ESPERO QUE VOCÊ ACEITE

 

Cartaz 2021 - Arquivo Fundart


        Um belo dia a estimada professora Nalva entrou em contato comigo para perguntar se eu aceitava uma homenagem: dar meu nome ao concurso de crônicas a ser criado. "A indicação partiu do setorial de literatura e foi aprovado pelos demais que compõem a Fundart". Na hora, eu fiquei de pensar. Afinal, muita gente boa estava escrevendo em Ubatuba; alguns até com vários livros publicados.  Eu apenas publicava, há alguns anos, uma crônica semanal no jornal A Cidade. Dei umas desculpas, mas fui retrucado pelo amigo Paulo Zumbi, do setorial de fotografia; "O seu nome foi consenso após os debates, Zé. Pensa bem, mas eu espero que você aceite". Ao chegar em casa, falei da novidade à minha Gal. "E qual foi a sua resposta ao pessoal da Fundart?". Foi a fala dela que me levou à resposta afirmativa para a Nalva. "Eu acho que você deveria aceitar. Afinal, se eles se lembraram do seu nome, e, dentre outros, decidiram por você, é sinal que têm muita consideração pelo que você escreve, que gostam de você. Imagine o quanto eles conversaram até deliberar pelo seu nome. Aceita sim". E assim foi. Agora, pelo sétimo ano consecutivo, tenho a satisfação de estar, junto com Idalina Graça, Washington de Oliveira e Tia Helô, compondo o cartaz de anúncio dos concursos literários da nossa cidade.


   O objetivo da realização é estimular à criação artístico-literária, em especial dos novos autores que passam a ter um espaço para difundirem os seus trabalhos e uma homenagem póstuma ou não a um poeta ou escritor nascido ou residente na cidade de Ubatuba. Poderão participar do Concurso Literário todos os interessados residentes ou domiciliados no Litoral Norte e Vale do Paraíba. As três melhores obras de cada categoria serão publicadas no livro intitulado "ANTOLOGIA 2021", com as seguintes premiações:

– 1ºLugar –R$ 500,00 (quinhentos reais) e 10 Antologia 2021;

– 2ºLugar – R$ 300,00 (trezentos reais) e 8 Antologia 2021;

– 3ºLugar – R$ 200,00 (duzentos reais) e 5 Antologia 2021.

    

P A R T I C I P E !


   Ah! Em 1993, eu fui selecionado! Quem declamou a seguinte poesia foi a estimada Tia Helô.


CAIÇARA

As cercas me limitaram,

Deixaram que os matos crescessem,

E, isolaram os ranchos do lagamar.


As cercas arruinaram os ranchos,

Apodreceram as redes, os remos...

A das canoas não há o que aproveitar.


As cercas limitaram a criação,

Diminuíram as moitas de bananeiras,

E, já não há mais "Salão".


As cercas arrancaram os chapéus,

Das calças arregaçadas nada restou.

Nem mesmo há jasmins e manjericão.


As cercas nos tocaram para o mato,

Para trás ficaram as casas de pau-a-pique.

Os pescadores estão enfileirados na cidade.


As cercas nos tiraram a convergência,

Não há peixe-com-banana verde, nem pimenta.

Nem se avista uma identidade.


As cercas mataram abricoeiros e pitangueiras,

Retiraram os sustos dos vaga-lumes

E o gosto de passear.


As cercas mudaram caminhos.

Já não há pegadas claras.

Nem para hoje, nem para posteridade.


sábado, 4 de setembro de 2021

UBÁ E IGARA

 

Cruzando o mar (Arquivo Canoas Caiçaras)

Que canoa! (Arquivo Canoas caiçaras)

Canoas defronte ao Casarão  (Arquivo Ubatuba Antiga)

Prova de canoas na praia de Yperoig  (Arquivo JRS)

     Líllian, Lisangela e Ana Carolina: bem-vindas ao blog!


   Assistindo ao Mestre Neco fazendo canoa, me recordei de quando o Mestre Doca trabalhava um tronco de taquiuva  bem grande. Acabara de tirar as medidas com um cipó. "Vai dar uma canoa de quase dez metros. No mínimo, quatro remadores serão necessários na embarcação. No tempo dos antigos bem antigos, dos parentes tupinambás, seria uma igara pequena. Igara-mirim. Uma igara grande, igaraçu, teria pelo menos o dobro do tamanho". Imaginei na hora o quanto teria de ser portentosa a árvore para canoa assim. Achei demais, mas nem comentei com o velho caiçara, mestre canoeiro no Saco do Sombrio, na Ilhabela. Fui pesquisar. 


    Achei algumas pérolas:


1- Os "Tupis do Rio de Janeiro, como os de Parati e Ubatuba, possuíam canoas tão grandes, feitas de um só tronco, que algumas delas eram capazes de quarenta, sessenta e mais tripulantes". Igarassu era uma vila pernambucana. Hans Staden, que a visitou e ajudou a defender-se contra os Potiguara, em 1548, denominou-a de Garassu.  Imagine só!  Escreveram que "Martim Afonso de Sousa, na sua viagem de 1530, assistiu, maravilhado, a uma encarniçada batalha naval entre gentios de Itaparica e do continente na Baía de Todos os Santos". Só não se demorou muito por lá, porque precisava vir até a Baixada Santista e fundar, dois anos depois, a primeira vila do Brasil: São Vicente. Quando eu comentei isso com o tio Dico do Puruba, ele arrematou: "Pois é.  Ele até esteve uns três dias aqui com a gente, mas estava apressado mesmo. Pousou ali, na casa do tio Durval, discutiram futebol até o curiabô gritar no mato, mas quem levou a melhor foi o titio corintiano. O outro era vascaíno. Hoje nem lembro mais da cara dele. Só sei que fedia demais. Porcalhão, não tomava banho! Confirmou aquilo que o finado vovô dizia dos portugueses". Gargalhei, ué. Como é sarrista o povo caiçara!


2- Ubás eram as canoas feitas de cascas de árvores, com pontaletes no meio e ajustadas com cipó, de acordo com o estudioso Teodoro Sampaio. "Em geral eram pequenas, leves e mal compostas". Ou seja, embarcações do tipo a "Cu Grande", do saudoso tio Genésio, uma canoa bem feia, rombuda, mas muito usada para cargas entre Lázaro -  Fortaleza, e, Praia Dura - Fortaleza, no tempo em que nem estrada tinha por aqui. 


   O nome ubá, segundo o autor citado, "confunde-se frequentemente com o vocábulo uyba, que quer dizer flecha". Pelos terrenos, sobretudo próximos dos rios de Ubatuba, abundam os flechais. As hastes, de onde saem as floradas muito semelhantes às flores dos canaviais; eram usadas para fazer flechas a serem arremessadas pelos arcos dos guerreiros dos povos originários. Ainda hoje, apesar de todas as sortes de destruição, ainda avistamos às margens do Rio Grande de Ubatuba os vistosos flechais. Os caiçaras de outros tempos usavam as referidas hastes para confecção de gaiolas. Portanto, não duvido que Ubatuba sempre foi "Uyba-tiba, o flechal, ou canavial bravo". Vários autores são da mesma opinião.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

PROSA DE PESCADORES - II

 

Arte no muro - Arquivo JRS



A caiçara Antônia  -  Arquivo Péola, Carol e Turma do Mestre Neco

         Dia claro; estou andando, sentindo a maresia que se alastra  embrulhada na cerração jundu acima. Penso na estimada Antônia que partiu desta vida. Sinto a areia, tão grossa como a da sua querida Praia Vermelha. De vez em quando me detenho nas gravuras, rabiscos e tantas imagens que esse bando de artistas vai semeando pelos caminhos. Logo vem ao pensamento o querer adivinhar as razões desses registros: "É estímulo do mar que ronca logo ali. Ou será porque a natureza é bela demais? Pode ter também motivações gastronômicas?". Por fim, sinto que é espírito caiçara gritando dentro das lembranças das pescarias-contemplativas. Irson, cujo rancho era na Barra da Lagoa, disse-me um dia: "Papai, bem cedo, quando chegava de visitar o tresmalho, me encontrava na areia. Eu o ajudava botar a canoa para cima. Mamãe dava a recomendação aos filhos de impedir que ele pusesse o pé na  água  depois de desembarcar. 'Não deixem nem que a onda alcance o calcanhar dele, senão ele volta para o mar'. E era assim mesmo!". Me admirei porque foi a primeira vez que escutei algo semelhante. E o Irson completou: "E tinha razão a minha querida mãezinha! O meu finado pai gostava tanto do mar que, tenho certeza, ele passava mais tempo embarcado na canoa do que convivendo em nossa casa". Me recordando disso,  até os dias de hoje, ao andar pelo lagamar, vislumbro canoas-casas de mais gente que conheci.  O Grande Mar se sentia mais feliz por tamanha devoção.


      Agora partiu a nossa querida Antônia, a "Macuca", uma brava mulher caiçara. Ainda bem que a última lembrança que eu guardo dela é daquele fandango no Prumirim e de uma prosa durante um café com tanta gente boa dali!  Dela escutei a "história da canoa que morreu trabalhando". Como assim, Antônia? "Ah, faz tempo! Eu era pequenininha. Foi assim: o padrinho, por consideração né, pescador como todo mundo daquele tempo, tinha uma canoa de capurubu muito velha, mas muito boa. Ardentia era o nome dela. Aquela canoa era a sua vida, era a sua paixão. Aturou muito tempo a canoa dele, estava no fim da vida, toda pijuca, mas ele não se separava dela. Agora vem a tristeza: uma ocasião, chegando no quebra-mar, enquanto espera um jazigo de onda, ele sentiu um afundamento sob os pés ao mesmo tempo que dava força no remo para encalhar na areia. Nem deu tempo de chegar lá porque  a canoa afundou devido ao esfarelamento do fundo. Sorte que havia gente no jundu para ajudar ele. Recolheram o que puderam, puxaram a canoa até o rancho. No mesmo dia, o coitado do meu padrinho carregou a canoa até o seu terreiro e a transformou num lindo canteiro de mariquinhas-da-serra. Desde o dia do infortúnio no quebra mar, ele entrou em depressão, repetia que a sua companheira Ardentia, seus pés em cima do mar, morrera trabalhando. Em pouco tempo ele se foi também. Imaginem o quanto ele tinha se afeiçoado àquela que tantos peixes carregou e garantiu o seu sustento. Ainda hoje eu sinto muita a falta dele, do meu padrinho".

     Agora é serão. Vá, Antônia!  Nos deixe a sua benção e vá se encontrar com o seu querido padrinho de consideração e tanta gente nossa que partiu.



quinta-feira, 2 de setembro de 2021

PROSA DE PESCADORES

 

Arte resgatada por Flávia -  Arquivo JRS 

         Amanheci e anoiteci com saudade de uma prosa, no jundu ou em outro lugar qualquer perto do mar, para me deliciar nas aventuras da minha gente, dessa caiçarada que tantas coisas já viveu e tantos momentos fantásticos criou. Por isso decidi compartilhar algumas oportunidades que tive e tanto me compensam dessas ausências, desses momentos.


        Tio Silvário, bem idoso, marido da tia Astrogilda, na sala da casa deles, no Morro das Moças, contou-me  de quando eram recém-casados  e ele foi pescar com o primo:


     "Nós saímos de madrugada; era tempo de pegadeira de peixe-porco ali perto, no largo da Caçandoca. A isca era de bicho da praia, cavado um dia antes. Assim que fundeamos a canoa, de ingá, já fomos trazendo peixe, um atrás do outro. De repente, alguma coisa se enroscou no cabo da poita e saiu arrastando a canoa. Bateu um desespero em nós dois. Recolhemos as linhas e pegamos os remos para controlar a canoa, sem virar no zig-zag daquilo que saía mar afora. O  que seria, meu Deus? A gente já ia longe, chegando no Mar Virado, quando aquilo aboiou. Era uma arraia. Mas não era uma arraia. Era a arraia! Enorme, com dois chifres medonhos. Foi neles que o cabo da poita estava engatado. Que azar o nosso. De repente, ela pareceu voar metros acima da linha do mar e caiu esparramando água como se um grande tapa tivesse sido dado na superfície. Nessa hora, por sorte nossa, o imbé se desenroscou sozinho. Ela se foi para as funduras e nós tivemos de voltar remando toda aquela distância do nosso lugar. Tivemos sorte naquele dia. Ainda bem que a canoa resistiu naquela pancadaria  toda mar afora. Sabe por quê? Era de ingá!".   


           Na sequência, tia Astrogilda explicou uma sequência diferente, uma pescaria em etapas.


         "Era assim, meu filho: meu finado pai só pescava com camarão do rio. Era costume dele, tal como meu finado avô. Por isso, quando queria largar uma linhada, seguia até o riozinho mais perto com uma peneira, ajuntava alguns camarões, desses tamanqueiros e cafulas, e saía logo ali, de canoa. Sempre pescava sozinho, sem ir muito longe. Do lagamar a gente avistava bem ele; dava até para dizer qual peixe tinha largado no fundo da canoa.  De volta à casa, ele separava as tripas dos pescados e dizia que no outro dia viria peixe  maior. E assim, no outro dia, as tripas separadas serviam de isca. Atraídos por elas, os peixes maiores eram fisgados por papai. Novamente o mesmo procedimento - de deixar tripas para nova pescaria. No terceiro dia seguido, agora se afastando mais longe da praia, as tripas maiores estavam em anzóis maiores. Então vinha peixe grande! Bastava quatro ou cinco deles para lotar a canoinha dele. Aquilo dava para nós e era repartido com mais gente. Por fim, ele dizia que era suficiente o que foi ajuntado até a outra onda de vontade e necessidade de pescar".


         A grande lição, a conclusão da saudosa titia: "Papai ensinava que toda criatura precisava crescer e se multiplicar". E, para fechar com chave de ouro: "Agora vamos tomar café, menino! Tem farinha de mandioca, tem uma panela de arroz e tem peixe-espada frito esperando por nós. Ande logo!".