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Decoração - Arquivo JRS |
Todos os dias, bem cedo, me detenho no morro para olhar a estrada lá embaixo: passam automóveis, caminhões de cargas, tropas de burros... Seguem lenhadoras, trabalhadores braçais com seus embornais e cachorros... Passam depressa os motoqueiros munidos de suas ferramentas... De vez em quando um preá ou uma lebre se tecem pelo asfalto também.
Anteontem, quando uma chuva fina teimava em deixar o amanhecer mais frio, avistei um homem e seu cachorro que sempre seguem nesse ponto do dia para a labuta. Não consigo dizer se ele está com algum tipo de capa para se proteger, mas...pelas mãos nos bolsos, deduzo que sente o frio. Ouço um barulho se aproximando: desponta na curva o fusca branco do Chico da Tiana que trabalha numa fazenda distante sete quilômetros. Vai agora e volta pouco antes do anoitecer, só altera este ritmo aos domingos, dia de descanso. Todos estão se dirigindo aos seus lugares de trabalho. Humildes trabalhadores e trabalhadoras que me fazem lembrar de companheiros de outrora na construção civil e de partes de um poema de Vinicius de Moraes:
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam das mãos.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
É assim, né? O trabalho acaba prendendo o ser humano. Pior: escraviza! Acorda, se alimenta olhando o relógio, sai às pressas com a preocupação de não ter esquecido nada, trabalha o dia inteiro muitas vezes sendo humilhado por um chefe ou patrão, volta para casa, toma banho, se alimenta e logo vai descansar para enfrentar um novo dia de trabalho algumas horas depois. E ainda tem gente, dona do capital, que acha pouco! Essa iniquidade exploradora, que atualiza o passado escravocrata, não quer nem imaginar o fim da escala de trabalho 6 X 1, diz que um dia de folga está bom aos seus trabalhadores e trabalhadoras.
Mas voltando ao meu momento (de observação ao amanhecer): Chico da Tiana breca o fusca, oferece carona ao sujeito. "Agora o cachorro vai ter de correr atrás do carro se quiser seguindo o dono". Foi o meu pensamento. Pensei errado! O cachorro também foi colocado dentro do carro. Ou seja, a solidariedade foi demonstrada aos dois que seguiam juntos na fina chuva: homem e cão. Deve ser isso parte da ampla dimensão do gesto de repartir o pão, né?
A campanha pelo fim da referida escala deve tocar nossos corações tal como está na poesia:
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Dos seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
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