 |
Viva a vida! - Arquivo JRS |
Na minha infância, num tempo passado bem antes da metade do dia da minha vida, parece que havia mais religiosidade no ambiente, entre o povo caiçara. Predominava a igreja católica; só no centro da cidade havia duas outras diferentes: a Presbiteriana e a Assembleia de Deus. No bairro do Lázaro estava nascendo a Congregação Cristã. Eram narrativas diferentes disputando fiéis, querendo crescer em todos os sentidos. Criança pode muitas vezes não falar, mas capta muitas coisas e fica pensando a seu modo a respeito de tudo que acontece à sua volta. Já naquele tempo eu queria entender porque sendo Deus um só havia essas igrejas, tantas religiões diferentes, com pregações diversas que causavam desavenças até mesmo entre alguns dos meus parentes próximos. Uns comentários pareciam justificar o troca-troca de religião: "Fulano, depois de engravidar aquela coitada, se arrependeu, mudou de igreja para mostrar que se converteu. Deus tá vendo!", "Beltrano foi pra tal igreja depois de passar a perna nos irmãos. Quem tá inconformada é a coitada da mãe dele", "Depois daquela briga não fui mais à missa. Quer me achar no domingo? Tô no culto orando!"...
Naquele tempo eu já me perguntava, mas tinha medo de comentar com alguém: "Como é possível tantas diferenças nas doutrinas de um só Deus?". Só exemplos das pessoas mais próximas e de algumas lideranças que se empenhavam em defender a justiça como vontade maior de Deus me convenciam de um caminho mais acertado. Veio a adolescência e a juventude, vieram outras igrejas mais diferentes ainda! Pastores motivavam as gritarias, colocavam caixas de som nas calçadas, falavam em "línguas" que não se entendia nada etc. Também o catolicismo se apresentou com novas tendências, cheias de "milagres", investindo em negócios tipo turismo religioso, medalhas milagrosas etc. As festas se tornaram pecado, dançar era coisa do Diabo em todas as vertentes religiosas que estavam no meu radar. (O saudoso Zé Pedro, da Fazenda da Caixa, mestre cirandeiro, me disse assim um dia: "Aqui na Picinguaba agora tem quatro igrejas diferentes, mas todas pregam que a dança é pecado. Por isso não existe mais a nossa Ciranda, tá se acabando tudo"). Após a década de 1970, a televisão ganhou os lares apresentando novidades de longe, inclusive pregadores que estavam ganhando fama mediante a espetacularização do sagrado. Daí chegamos esse modelo, a esse conjunto, como setas indo em todas as direções, incentivando perseguições aos diferentes, amortecendo a religiosidade local, prevalecendo o individualismo, fomentando a ganância, quebrando laços comunitários. Ótimo para quem quer explorar os pobres! A religiosidade foi ganhando outros contornos, aceitando o egoísmo e se conformando com as injustiças. Quem falava contra tudo isso precisava ser calado. A primeira lição cristã (de que as comunidades primitivas tinham tudo em comum, o denominado comunismo primitivo) caiu por terra porque passou a valer a máxima de "quem puder mais chora menos". Percebe a ruína da vida das comunidades caiçaras se aproximando? Percebe a espiritualidade dos mais pobres sendo corrompida por interesses dos mais ricos? Percebe os riscos à natureza única desse nosso lugar, desse chão caiçara?
Hoje eu sigo nas minhas simples reflexões, recorrendo às palavras para entender melhor os rumos que aí estão sempre no objetivo de alienar as pessoas, de direcioná-las a este fim: mais gente deve concorrer para garantir os lucros de pouquíssimos. Não é difícil concluir de que as vontades divinas não são divinas. São projeções de gente como nós, mas diferente nos desejos: uns querem repartir, outros desejam acumular a qualquer preço. E assim, ao longo da história da humanidade, as teologias foram sendo construídas, elaboradas e reelaboradas. Com visões particulares e revoltas diversas surgiram muitas igrejas e chegamos às "vontades divinas" atuais, sendo opção de cada um abraçar aquela que melhor lhe convém. Na minha opinião, é caminho divino - traçado por humanos, lógico! - querer um mundo mais justo, onde a vida seja intensa e alegre para todos. Pessoas e grupos que buscam resgatar esses valores, destacá-los na nossa cultura pelo o bem da Terra e da humanidade, merecem todo o nosso reconhecimento e incentivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário