sexta-feira, 9 de julho de 2021

E ELES SE AMAVAM

 

Na parede de uma casa abandonada (Arquivo JRS)

     Eu me lembro que, há muitos anos, comentava com uma amiga sobre pessoas homossexuais. Falei a ela que eu não me lembrava de ouvir, na minha infância, comentários entre caiçaras a respeito de preferências sexuais diferentes das de marido e esposa. Nem notava nada de diferente. Ela respondeu prontamente: "É lógico que tinha! Você é que não enxergava!". Não discordei dela. Concluí que era porque ninguém fazia distinção preconceituosa, com as maldades que hoje vemos estampadas em muitos pessoas e fazendo parte de discursos de ódio até de hipócritas batendo no peito e se dizendo cristãos. Depois, pensando bem, fui me recordando de amigos e amigas que eram homossexuais e viviam bem, sem gracejos ou perseguições por seus modos e suas preferências afetivas. Mario, Maurílio, Neiva, Eliana, Luiz Carlos, Jorge, Aguinaldo... Tudo gente boa, amigos e amigas que promoviam agradáveis prosas e faziam a diferença em nossos momentos pela graça, inteligência e companheirismo comprovados. Estes são alguns nomes que me veem sempre com saudades. Infelizmente a maioria morreu vitimada pela aids, essa doença surgida na década de 1980. 


    Hoje sonhei com Euclides, o motorista de ônibus. Desde que aprendi o conceito, soube que ele é homossexual; há muito tempo está ajuntado com Timóteo, um migrante mineiro. Não tive notícia se casaram-se após a lei de união civil ser aprovada. A verdade é que eles se amam e estão juntos desde o final da década de 1980; vão envelhecendo juntos, mais felizes do que muitos pais e mães, maridos e esposas que conheço. Mas porque estou falando deles aqui? É porque me recordei de uma situação digna de não ser esquecida, de ser rememorada; merecedora de ser dada a conhecer a mais gente e à sociedade que parece estar se modificando para pior, sendo mais preconceituosa e com requintes de maldades. Foi assim: a minha família acabara de se mudar para o bairro da Estufa. Eu embarquei no ônibus e cumprimentei o Euclides. Fazia tempo que ele estava como motorista, era habilidoso, atencioso e vivia recebendo elogios. Nunca soube de algum entrevero, de confusão envolvendo o seu desempenho profissional. No trajeto, quando se aproximava do ponto mais próximo da marcenaria em que o Timóteo trabalhava, uma senhora idosa deu o sinal para descer. Foi aí que eu presenciei o quanto havia de estima entre Euclides e Timóteo. À senhora que, aparentemente, nem amiga era, foi feito um pedido:  "A senhora faz o favor de entregar esta sacola naquela marcenaria ali? É para uma pessoa chamada Timóteo. Eu agradeço muito. Timóteo é o nome dele. Muito obrigado, minha senhora". Ela se surpreendeu, mas demonstrou bastante boa vontade em prestar o favor. Assim que a condução continuou a viagem, ele disse aos mais próximos: "É a marmita do meu companheiro. Quem não gosta de uma comida quentinha?". 

       Confirma um texto considerado sagrado: "E eles se amavam". (Acho que era Paulo, numa carta a outro Timóteo).


       Miserável daquele que não consegue compreender e trabalhar em si mesmo um comportamento presente em muitos seres além de nós, independente de sexo, etnia, credo ou ideologia! 

       Coisa mais fundamental na vida é o amor. Alguém discorda que é o que importa nas múltiplas formas de manifestação afetiva e/ou sexual que o ser humano pode ter? 

4 comentários:

  1. A cada dia que se passa a leitura por aqui se torna mais rica e preciosa. Gratidão 🙏

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  2. Eu é que lhe devo gratidão e um forte abraço.

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  3. Parabéns, Zé, pela profundidade e lucidez, qualidades que lhe são inerentes! Um forte abraço.

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  4. Gratidão, Jorge. Seríamos mais felizes se na nossa vida não houvesse tanta gente hipócrita e maldosa. Viva o amor!

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