segunda-feira, 19 de julho de 2021

AS POSSES ERAM NOSSAS, O CHÃO ERA DE TODOS

 

Praias Caçandoca e Caçandoquinha (Arquivo JRS)

      Tempos atrás, já há alguns anos, bem ali no Buraco do Negro, depois de passar a praia do Pulso, me detive para olhar as duas praias - Caçandoca e Caçandoquinha - de onde é parte da minha família paterna, a gente dos Félix. Fiquei pensando em tantas histórias que resultaram na expulsão dos pobres caiçaras. 


    Tia Astrogilda, da praia do Pulso, contava que "essa gente rica teve apoio de gente nossa, de parente que traiu a comunidade. É o caso do tio Basílio, que Deus o perdoe, que foi vendendo tudo sem ninguém saber. Ele fazia tudo de noite, sabeis? Um belo dia chegou o inglês, marido da dona Vera, mandando a gente sair porque a terra era dele. Mostrou o papel que dizia ser tudo dele. As minhas crianças eram pequenas. Deixamos tudo aquilo. A nossa maior riqueza logo virou loteamento de  rico, onde gente pobre, hoje, tem de passar vigiado por seguranças. Não é triste isto?". Na mesma praia, tia Apolônia e as irmãs se queixavam do irmão delas, com relato parecido com o da tia Astrogilda. Diziam que tio Geraldo, o irmão, assinou em nome delas e da mãe a venda da posse. Por isso tiveram de sair quase que imediatamente. "A nossa casinha era ali, no jundu, perto do rancho de canoa. O nosso irmão fez coisa errada, mas a gente não podia desfazer o negócio dele, fazer ele passar vergonha, dizia a mamãe". 


    Tio Roque, do sertão da Caçandoca, foi um dos últimos a ser enxotado em 1975 por "homens que ameaçavam, chegavam de noite  atirando. Depois depois de colocarem alguns num caminhão de mudança, queimaram as casas. Quando a gente desceu do sertão e passou no Benedito Domingos, no Leocádio, as casas deles já estavam todas queimando. Eles já estavam andando. Pra onde? Não tinha pra onde a gente ir. Nós e o pessoal do Dito da Matta fomos parar no sertão do Perequê-mirim". 


    Os vestígios da fazenda cafeeira de José Antunes de Sá, datada de meados de 1800, teriam de ser apagados. Pés de café e bananais foram destruídos pelos jagunços da Urbanizadora Continental. Por isso também foi ao chão as ruínas da casa grande, tendo suas pedras roladas na gamboa e enterradas com areia dali mesmo. Máquinas trabalharam dias e dias naquele lugar. Era um local onde os ex-escravos e caiçaras tinham muito respeito, faziam cultos e contavam histórias vividas pelos antigos. As posses eram nossas, o chão era de todos.


    Podemos afirmar que foi a especulação imobiliária, vinda com a abertura das estradas na região, que resultou nessas ambições, a esses exageros e crueldades que parecem não caberem em lugares tão bonitos, em praias tão lindas. Espertalhões cooptaram gananciosos e ingênuos, se aproveitaram dos caiçaras que não sabiam ler e escrever e não conheciam as leis. Além do mais, cultivavam a moral cristã de que não podiam contrariar os próprios irmãos. É assim ainda hoje! Quanto de irmãos continuam se aproveitando de irmãos, de heranças que deveriam ser partilhadas igualmente?  Tipo de gente assim teria sido aliada dos especuladores no tempo da minha bisavó Zulmira, do tio Roque e de tantos outros expulsos das praias citadas acima.

3 comentários:

  1. Que história triste, Zé! O pior é que não é ficção, é realidade!

    ResponderExcluir
  2. Bom dia! Sou morador da Caçandoca. Gostaria de falar e ouvir mais sobre a história de nossa comunidade. Seria um prazer o contato com o Sr. José Ronaldo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Infelizmente agora estamos na pandemia. Mas há várias pessoas na comunidade que poderão dar sua contribuição, ajudarem a registrar a história local. Registre tudo, faça um livro desse lugar. Da minha parte, já publiquei aqui várias matérias da Caçandoca. Abraço e força nessa empreitada.

      Excluir