sábado, 3 de fevereiro de 2018

FALA, OLYMPIO!

Frei Pio, do "Barco do Padre".  (Arquivo Luzia)

               Na década de 1970, antes mesmo de começar a construção da BR-101 (Rio-Santos), no trecho entre Paraty e Ubatuba, o pesquisador Olympio Corrêa de Mendonça, se utilizando do “Barco do Padre”, que fazia a rota das comunidades caiçaras isoladas, inclusive das ilhas, empreendeu uma interessante pesquisa, cujo título acabou sendo O léxico do falar caiçara de Ubatumirim, onde aparece considerações acerca de alguns traços do nosso povo. Por exemplo, a respeito da religião e das crendices, assim está registrado:

Não há uma moral religiosa no sentido explícito da palavra. As ações são consequências de tradições e as novidades são encaradas com desinteresse e, se provocam alguma modificação, são analisadas com bom senso. São, até certo ponto, refratários à pregação religiosa dos  católicos ou protestantes. Resistem mais com indiferença e a falta de adesão do que com palavras ou atos hostis. Na prática, parecem desconhecer  a noção de pecado, e nem mesmo as crendices e as superstições merecem crédito. Parece não existir tabus que cheguem a afetar a confiança no próprio homem. Oswaldo Elias Xidieh, em seu trabalho “Narrativas pias populares”, conta o que observou em suas andanças pela Ilha dos Búzios, nesse mesmo litoral. Um de seus companheiros achegou-se do velho Mateus, morador do Saco das Guanxumas, fabricante de objetos de madeira, e lhe disse quase à queima roupa:

“Seu Mateus, o senhor sempre morou aqui na ilha, e, por isso, deve conhecer muita coisa a respeito das crenças dos caiçaras. Por exemplo, os senhores acreditam em assombração, não é mesmo?” O velho respondeu categoricamente: “Olha moço, disso eu não sei... Agora, dessas histórias que o senhor fala, nós não sabemos nada”.

De outra feita, inquirimos um informante do Sertão da Quina, bairro rural ao sul de Ubatuba, e recebemos resposta semelhante. Trata-se do senhor João José Giraud, nascido na praia da Lagoinha:
“ Eu já ouvi falá de assombração, mais até hoje não vi e não posso afirmá. Acho que não tem não. De primêro, quando era criançola, tinha medo de assombração, mais adespois, lavava corpo, vestia, carregava, fazia cova, enterrava; me desapareceu o medo”.


Por ocasião da chegada dos primeiros tratores da Rio-Santos, roncando na serra, à noite, com seus dois faróis iluminados, ouvimos amigos caiçaras ameaçarem as crianças, dizendo que era boitatá. A alusão não surtia efeito. Esses comportamentos são tachados por alguns estudiosos da região como relaxamentos morais. [...] Nós, entretanto, durante os anos que convivemos com essas pessoas, notamos as reações naturais que têm ao se defrontarem com os problemas da vida. No artesanato, esculpem os animais e os homens com os membros sexuais; em sua designação não há quase termos chulos, e desconhecem os da sociedade circundante. Enquanto o forasteiro, operário da Rio-Santos, peja-se ao pronunciar o nome do peixe baiacu, o caiçara o faz sem nenhuma falsa vergonha. Em contato, porém, com o visitante, ele para não ser ridicularizado, diz astutamente embaia ou baiácu. Percebe-se que a contaminação do pseudo-moralismo urbano já está irrompendo por lá.

Nenhum comentário:

Postar um comentário