domingo, 25 de fevereiro de 2018

ALGUMAS LEMBRANÇAS



Detalhes notados (Arquivo JRS)

               Sabe aquele dia que você acorda pensando nas pessoas que passaram por sua vida, mas não estão mais compartilhando o seu dia a dia? Pois é! Hoje eu amanheci me recordando da Fernanda Liberal que, no começo da década de 1970, junto com o esposo Lemar, filhos e filha (Patrícia), resolveu se mudar da cidade grande para o litoral. Em Ubatuba, na praia do Perequê-açu, construíram seu retiro de aconchego, onde Fernanda, com muita sensibilidade, inspiração e talento nos deixou emocionantes páginas, de onde eu recortei o texto abaixo. Assim ela continua entre nós, imortal. Conforme escreveu o amigo Jorge Ivam, “nossos bons pensamentos serão multiplicados quando escrevemos para todos lerem”. Ah! E deste talentoso baiano acaiçarado tomei emprestado o título deste. Valeu, Jorge!

               Cada vez que passa de carro sobre a ponte do Perequê-açu volta o desejo. Olha o sobradão do Porto. Soube de um concurso de contos. Quando as inscrições se encerram? E passa um dia e outro dia, e nada. Fica só no desejo.
               Vai descansar um pouco – folhear revistas antigas. Curte muito essa viagem no tempo.
               A arte de ser mulher – lê e relê, volta a ler, se encanta, se assusta, são palavras fortes, atingem. Naquela época, 74, seus grilos eram sair de São Paulo, Capital, e vir para a praia. O tema frequente em suas escritas era “assumir-se”, “ser eu”, por inteiro, abrigar o desejo, a plenitude, viver para dentro e depois para fora. Ah! Carmen, quantos anos ela comprou a revista só para te encontrar, te ler, te saborear: tua irreverência saudável questionando o estabelecido, propondo mudanças, incentivando o novo, o fértil, a Vida.
               Dentro dela, na biblioteca, sua filha Patrícia vira o lado da fita. Ah! Essa Elis Regina...

               Eu quero uma casa no campo
               Onde eu possa ficar do tamanho da paz/ E tenha somente a certeza
               Dos limites do corpo e nada mais
                              (...)
               Eu quero a esperança de óculos
               E o filho de cuca legal
                              (...)
               Onde eu possa plantar meus amigos
               Meus discos e livros e nada mais.

               “... é você, minha querida Elis – te lembro nos festivais da Record -, eu tinha filhos pequenos, bebês, e sabe... eu os embalava cantando suas músicas e pensando em você. Na tua energia, na alegria, na força da tua voz, na interpretação que vinha das vísceras. Te assisti nos palcos. Te admirava. Passei a saber da tua vida – aí aumentou a admiração. Mulher coragem, mulher que ‘vira a mesa’, que pensa pela sua cabeça, que opta pelo amor enquanto ele é bom, gostoso, prazeroso, que reclama, que tem gênio forte, que é briguenta, que quer uma ‘casa no campo’, e defende o verde, uma vida saudável. Você, Elis, que tinha angústias, depressões, loucos amores, indagações e esperanças”.
               Pega uma flanela e tira o pó dos objetos da estante. Bate os olhos no seu rosto e Dina Sfat a olha fundo. É capa do livro Palmas pra que te quero. Pensa: “Estou descobrindo a amada e fértil solidão – tentando ser eu, por inteiro. Integrando meus limites, corporando minhas couraças, enxergando meus defeitos, revendo andanças, querendo criar. Em cima dessa busca, eterna busca de felicidade (comigo), existe você, Dina. Como eu a amo! Não aceito sua partida. Ela está aqui – no seu livro, sua vida inteira, seus medos, sua insegurança, sua imensa e poderosa coragem, sua garra, fibra e verdade. A cara de Dina é verdadeira. Aquele solhos penetrantes que no palco, teatro ou TV te olham, lá no fundo, mergulham e seguem os olhos. A voz de Dina – ela fala e diz -, as palavras saem da carne, da pele, dos poros. Ah! Dina, como eu me lembro de você naquela São Paulo dos anos 60, 70, quando eu tinha um olhar de esperança nas pessoas e você, em especial, me fascinava, me seduzia. Te acompanhei de perto, não perdia peça que você participasse, sabia das tuas inquietações, da simbiose, da perda da identidade. Era como se a nossa busca, a nossa trajetória de mulher, como eu, você e outras, fosse a mesma: era um espelho coletivo, onde nos refletíamos umas às outras. Sinto uma saudade funda de você, Dina Sfat”.
               Limpa mais livros, objetos, artesanatos de Ubatuba, hoje de céu azul, sem nuvem alguma, as frutas na gamela, a roupa seca no varal, ainda algum trabalho a ser feito, uns telefonemas para dar, umas gavetas por arrumar, e muitos, muitos conflitos por administrar. Senta agora, um pouco, abre a janela, entra o ar leve e muito barulho do mar – pega o lápis (adora escrever a lápis) e pensa: “E o conto?”.

               Na dedicatória de suas Mulheres Oceânicas, assim nos escreveu a saudosa Fernanda: Zé e Gláucia vocês  são “oceanos de doação”. Quanta saudade dessa mulher!
               Ah! Que todos nós tenhamos um bom dia!
              
              

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