quinta-feira, 16 de outubro de 2014

MEMÓRIAS PRECIOSAS

Dona Gertrudes: caiçara de prosa maravilhosa! (Arquivo JRS)

               “Você está com doze anos? Então deve ter nascido em 1919, certo? Vinte e sete de dezembro, né? Pronto! Agora você já tem registro e pode viajar para Santos!”. Foi assim que eu imaginei o tabelião resolvendo a questão de Gertrudes Francisca do Nascimento, caiçara da Praia das Toninhas, filha de Cristóvão Cabral Barbosa e de Benedita Francisca do Nascimento. “Nesse tempo eu ainda era Nascimento. Não trazia o nome da família do pai porque, naquela época, os filhos só eram registrados tendo o nome da descendência materna. O nome que tenho hoje – Gertrudes Francisca Lopes – vem de quando eu me casei com Benedito Lopes”. Neste dia (15/10/2014) passei uma tarde inesquecível, numa prosa maravilhosa com Dona Gertrudes e outras pessoas da nossa terra, da nossa cultura. Desde já agradeço ao Rogério Estevenel pela articulação do encontro. Valeu mesmo!

               Dona Gertrudes tem uma memória maravilhosa nos quase 95 anos. Oficialmente esta é a sua idade, mas há controvérsias. Afinal, era já tinha vivido alguns anos quando, ao precisar ir para Santos, descobriu que não tinha registro civil.
               Após tantas conversas com a caiçarada antiga de Ubatuba, é a primeira vez que me deparo com uma narrativa de ida de mulher (adolescente, no caso) para a região da Baixada Santista no começo do século XX, com intuito de ampliar as suas possibilidades de sucesso. Aos homens isso era comum: iam trabalhar nos bananais para terem uma renda garantida. Assim foi com meus avós, com o meu pai e tantos outros. Muitos desses migrantes caiçaras nunca mais voltaram às terras ubatubanas. A adolescente Gertrudes, por recomendação de padre João, foi interna na A.L.A (Assistência ao Litoral de Anchieta), localizada na Rua Conselheiro Nébias, na cidade de Santos. “Lá eu morei por cinco meses. Depois saí e passei a trabalhar como doméstica. De vez em quando eu vinha passear em Ubatuba, visitar a família, o meu pessoal. Viajei no Santense, no Valença, no Ubatubinha, no São Paulo...Eram barcos que faziam as viagens costeando esses lugares todos”.

               O padre Johannes Beil, o Padre João tão estimado pelos caiçaras da primeira parte do século XX, desenvolveu a sua pastoral no litoral norte paulista até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, quando, devido ao contexto geopolítico, foi obrigado a se retirar da zona costeira. Uma característica da sua atuação era contribuir para a formação escolar e profissional da juventude caiçara. Por isso esteve à frente da construção da escola de pesca na Ilhabela, na implantação de escolas isoladas, no transporte marítimo motorizado para atender as praias mais distantes etc. Porém, através da conversa com a Dona Gertrudes, fiquei sabendo desse seu gesto mais radical: conduzir a outras possibilidades numa cidade litorânea já mais desenvolvida. Creio até que esse exemplo de encaminhamento possa ter sido o apelo para que as Cônegas de Santo Agostinho fundassem a A.L.A em Ubatuba, na Rua Gastão Madeira, onde hoje está a Escola Olga Gil, a prefeitura e adjacências, cujas religiosas (Glória, Nair, Laura, Sofia...) tive a honra de conhecer e de apreciar os trabalhos. Quantas jovens tiveram suas oportunidades a partir dali!?! Nesse momento desponta na minha memória alguns nomes queridos: Neide, Bernadete, Izabel, Elisabeth, Verônica, Ângela, Nazareth...

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