quinta-feira, 25 de julho de 2013

MEMÓRIA E RESISTÊNCIA

"Ainda assim faz-me lembrar de tanta gente e da nossa vida". (Arquivo JRS).

Completando um ano de falecimento da tia Astrogilda, penso no tio Silvário, no Toninho e nos demais familiares.  Essa minha gente está espalhada pelo território caiçara, desde a Baixada Santista até Ubatuba. Nessas alturas da globalização, pode ser até que algum descendente já esteja no estrangeiro. Vai saber! 

Nós somos da área agora denominada Quilombo Caçandoca; nossos antepassados se criaram por ali, antre o Pulso, a Caçandoca e adjacências. Muita gente, devido a especulação imobiliária a partir de 1950, sofreu horrores nesta referida área. A saudosa tia Astrogilda, “filha do tio Anastácio do Pulso, que morreu ainda novo, deixando as filhas ainda crianças”, foi um marco nessa resistência. Sempre estava presente, junto com o esposo, nas reuniões a respeito das terras da Caçandoca.

A minha memória registra as falas da titia a partir de 1970, do tempo em que a família morava na Praia da Enseada, onde, “no terreiro, do lado da porta da sala, tinha um pé de cravo-da-índia maravilhoso!". Por perto deles morava o Sebastião Giró (Giraud) e outros antigos do lugar. Os primos eram colegas de escola, no Perequê-mirim. “Cedinho iam a pé naquela distância...Nunca faltavam às aulas”.  A tia Astrogilda nunca conseguiu esquecer as ações violentas sofridas na Caçandoca. Os jagunços fizeram coisas terríveis às famílias dos pobres roceiros e pescadores:


“Olha, o que eles puderam judiar de nós, eles judiaram mesmo. Nós tínhamos um ranchinho lá em cima do morro, com aviamento de farinha. Tinha tudo lá, né. Nós morávamos na praia, não tinha lugar para plantar porque tudo era capoeira rala, tinha muita saúva. A gente fez a roça lá em cima, levava tudo e ficava lá a semana toda. Fim de semana a gente descia pra praia. Quando chega um dia, nós descemos na sexta-feira, chegamos cá e tinham acabado com tudo. Tinham cortado o cafezal, cortado a bananeira, cortado tudo. Mas acabou. Tinham roubado a casa, tinham entrado pra dentro. Eu tinha bastante peixe em casa, peixe salgado, peixe seco. Eles jogaram tudo fora, jogaram as minhas panelas, todas elas fora. Não sobrou uma panela pra mim cozinhar. Quebraram, amassaram”.



Creio ser importante manter a memória da tia Astrogilda e de tantas pessoas que foram a base da nossa cultura. Os descendentes precisam ter consciência de como se deu a perda do nosso espaço e das alterações muitas vezes danosas a tanta gente.

  Na Praia do Pulso, hoje um espaço bem vigiado para garantir a paz dos ricaços que lá construíram seus oásis, foi onde a vó Martinha, a tia Astrogilda e tantos outros se criaram. Tudo era muito bom até...


“Quando chegou um belo dia, o inglês chegou lá, mandando a gente sair, desocupar porque a terra era dele, mostrou o papel, sabe? E aí tinha que sair todo mundo. E foi saindo, todo mundo, todo mundo. Nós ainda birramos e fiquei ainda. Quando chega depois ele chega e manda sair, porque ele tinha comprado as terras e precisava das terras e que nós procurasse lugar. Eu com aquela ninhada de filho, meu Deus, não sabe o que passei. Com a ninhada de filhos, todos pequenos, não tinha ninguém para ajudar. Tudo o que a gente tinha era lá, era roça, era criação, era tudo”.

     Por fim, já vivendo seus últimos dias no Bairro do Morro das Moças, aos pés da Serra do Mar, disse a titia:

       "Ainda assim faz-me lembrar de tanta gente e da nossa vida".

Quer saber mais? Leia o texto Por que chora a juriti?, do mano Mingo.

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