sexta-feira, 25 de junho de 2021

SANTO TAMBÉM SE SUJA

 

Imagem: Toninho Félix 

        Mané Papudo, de Caraguatatuba, até uns anos desses, era um estranho para mim. Foi na praça da igreja Santo Antônio, a Matriz, que eu o conheci. Havia um canto naquele logradouro que era o ponto de encontro de moradores mais velhos da cidade.  Deve ser ainda. Tomara! Algumas vezes parei por ali para escutar os causos, as histórias. Adoro isto! Agora relato a fala do Papudo a respeito do santo padroeiro, da imagem que em outros tempos veio de Portugal. Não duvidei, mas me lembrei de um dizer do pai do Tiagão, lá da Itamambuca, quando o causo era mesmo espantoso: "A providência divina é capaz de muita coisa!". 

      Segundo o Papudo, houve um tempo em que os rios Guaxinduba e Santo Antônio se encontravam no centro da cidade, se esparramavam pelo grande mangue que vinha desde o Canto do Camaroeiro e rompiam a areia em pontos  diferentes conforme as épocas do ano. Outros, de  igual idade do narrador, amigos entre si, balançavam a cabeça e até diziam que era lugar piscoso, onde abundava robalos, e, no inverno, até tainhas entravam para a desova. Eu acredito que era mesmo, pois alguns lugares que cheguei a conhecer, com características semelhantes, também eram assim, tinham diversidade de pescados. Só que, por ser no centro da cidade, as enchentes causavam transtornos. Porém, naquele tempo ninguém ousava imaginar uma solução. "A natureza é coisa sagrada, não pode ser mexida",  disse um dos presentes. "O jeito era rezar". Mas rezar para qual santo ou santa? Lógico que teria de apelar ao padroeiro do  lugar. Afinal, era a Vila de Santo Antônio de Caraguatatuba. Pensei na hora: "O que um santo poderia fazer em tal situação?". Mas nada comentei. Então veio o espantoso: "O santo mudou o rio, separou os dois".  Nisso, alguém mais jovem ficou curioso, tal como eu. "E como, quando foi isso?". Aí o Mané Papudo assumiu a prosa:

    "Não é do tempo de ninguém daqui, moço. Era a minha avó Maria Saturnina quem contava. Ela viveu mais de 120 anos. Segundo escutei dela, numa noite o santo atendeu as rezas que faziam em relação aos alagamentos e desbarrancamentos. No amanhecer já não havia dois rios se encontrando, estavam longe um do outro. Ficou resolvido o sofrimento de quem morava por ali. Era vila ainda este nosso lugar. Sem dúvida, foi milagre do santo! A comprovação estava no altar, naquela igreja ali, que vocês estão vendo daqui. A imagem dele se encontrava toda suja no dia seguinte, com aquela terra do mangue; até barro preto tinha. Era ele mesmo. A figura toda suja de terra estava ali para quem quisesse ver. Foi uma comoção, estava na boca de todo mundo o  milagre e o esforço feito pelo coitado do santo a noite toda. Quem não gostou do feito foi o padre da época. Não sei o porquê. Até diziam que ele tentou tacar fogo na imagem, mas não conseguiu. Enfim, o importante aconteceu e está aí até hoje para a gente ver. Nunca mais o mangue foi o mesmo. No nosso tempo de crianças já não era tão grande. Hoje nem existe sombra dele. Foi todo aterrado, está debaixo de onde tem tudo aquilo ali, na avenida da praia. Os carros passam por cima, as pessoas dançam, praticam esportes, namoram e fazem tantas outras coisas sem imaginar que tudo ali era mangue alimentado pelo encontro dos dois rios.  Santo Antônio é merecedor de nosso reconhecimento até o fim da vida. Viva Santo Antônio! ".  

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