quarta-feira, 2 de junho de 2021

O APURO DO OTÁVIO

 

Tio Maneco, o rabequista, e Otávio (Arquivo Ubatuba)


       Os foliões corriam os lugares, iam até nas ilhas onde haviam moradores. Folião era quem fazia parte da corrida da Bandeira do Divino, uma das manifestações da religiosidade popular. Escutando as músicas, prestando atenção às letras, se aprendia do catolicismo, da doutrina católica. A Folia do Divino fortalecia a religião oficial de quase todos os caiçaras daquele tempo (do século XX). Tocadores, cantadores e versistas se tornavam conhecidos de norte a sul do município. Pedro Brandão, tocador de viola e cantador do sertão do Puruba, no norte, era uma das referências do pessoal da praia da Ponta Aguda, no extremo sul. Antônio Macuco, do Perequê-açu, era um versista elogiado por todos. Mais tarde, o Otávio da Conceição, um paratiano,  despontou como bom versista. Este eu conheci bem!

       Versista é quem conhece todas as músicas e puxa os versos nas cantorias. A maioria dos versos era conhecida de todos. Um bom versista era aquele que, reparando no trajeto e até mesmo na casa e nas pessoas que recebiam a Bandeira, transpunha à cantoria detalhes do entorno. Casos singulares se tornaram lenda na cultura caiçara. Vejamos alguns deles:

       Na casa do Ondino, um ponto do morro de onde se contemplava toda a Baía da Fortaleza, o Macuco viu gaiolas de passarinhos espalhados pelas árvores e na varanda. Em determinado momento ele abriu a garganta: "Ai a Bandeira do Divino, ai, ai.../ Aqui não há de demorar, ai, ai.../ Porque a pomba toda branca, ai, ai.../ O dono da casa há de engaiolar, ai, ai..." Parece coisa boba hoje, mas naquele tempo, com alguns sempre a repetir os versos, o Ondino cultivou raiva pelo versista. Diziam até que, em suas caçadas, o Ondino buscava ansiosamente por macuco, o pássaro, descarregando desse modo a sua revolta. Um detalhe: nunca mais esse meu parente, filho do tio Maneco Armiro,  recebeu a Bandeira do Divino em sua moradia.

       Outro caso foi do Otávio, na casa do João Barreto. Quem me contou foi o próprio João, meu primo:

     Sabeis, Zezinho, que a Folia passou aqui em casa? A Maria tinha feito um bolo delicioso. Você sabe que nisso ela é mestra! No meio, como recheio, era só abacaxi e doce de leite. Depois de algumas músicas, o pessoal comeu e se regalou. Café, bolo e refrigerantes... Até um garrafão de vinho, que já estava pela metade, entrou na dança. Na despedida, o Otávio (que tava de versista) não deixou de cantar: "Senhora dona Maria/ Mulher da vida adoçar/ Com abacaxi e doce de leite/ Não tem como não cagar".  E, imediatamente, foi largando o instrumento e perguntando onde era o banheiro. Da sala, onde todo mundo se encontrava, não tinha como não escutar as esguichadas da caganeira. Coitado! Senti pena dele; a Maria também. Por isso ela deu um jeito de arranjar uma vasilha - um pote de sorvete desocupado - e acondicionar uma porção do bolo para o Otávio levar para casa e saborear mais tarde. Coisas da vida, né?!

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