quarta-feira, 1 de junho de 2011

Desencanto de canto

       
          - É ele mesmo! É ele!
         Essa foi a exclamação de meu irmão quando chegou em casa e abriu o livro Ubatuba nos cantos das praias, de Kilza Setti, diante da foto intermediária da página cinquenta e cinco.
         - Quem? Perguntei sem entender nada.
         Ele explicou:
         - Acabo de chegar do Sertão da Quina. Quando passei pelo ponto de ônibus da Lagoinha, aquele mais perto da escola, vi uma situação que me causou uma revolta muito grande, um sentimento de impotência diante da estrutura social que predomina, onde poucos têm muito e muitos se ralam até o fim da vida para terem um mínimo, deixando muitas vezes de cultivar os seus talentos naturais.
         Depois de um bom gole de água, ele continuou:
         - Era um homem; estava de chapéu, sentado ao lado de duas cargas consideráveis de latinhas de alumínio. Já bem idoso, esperava a condução sob aquele sol ardido, prenúncio de trovoada no fim da tarde.
         - Mas o que tem isso? (Eu disse isso querendo apressar a conversa, porque tinha muitas coisas a fazer antes de findar o dia).
         - Calma, Zé. O que eu quero que você entenda é o seguinte: aquele homem das latinhas, que estava curtindo a pele na quentura do começo da tarde é este daqui. (Disse-me isso mostrando a fotografia do tocador de viola, rodeado por crianças, na pesquisa da Kilza).
         Peguei o livro. Vi a data da publicação: neste ano  está completando dezessete anos. Reparei melhor na figura do homem em questão. Notadamente já era de idade avançada naquele tempo. O livro, de valor inestimável, trata dos caiçaras de Ubatuba dentro da ótica da musicalidade.
         O tocador e sua viola de dez cordas, hoje catador de latinhas, é natural do Sertão do Corcovado. Está anônimo na catação pelas areias do lagamar, pela quentura do jundu, pelos sacos de lixo, pelas margens da rodovia...
         Será que não está passando da hora de se preocupar com essa cultura, com esses artistas outrora reconhecidos e valorizados?
         É o destino que quer? Ou somos nós que fazemos pouco caso de tais situações?
         Pois é, meu bom velhinho! Quem vai resgatar o seu tino musical, o seu prazer de tocar?
         Eu prometo pensar com muito carinho sobre a sua história. Ainda haverei de ouvir seus ponteados me recordando dos bons tempos da Folia do Divino.

(Nota: o presente texto foi escrito em 2002. O nosso personagem é o finado Zacarias, grande tocador de viola nas “corridas da folia” e nas “funções caiçaras”).

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