quarta-feira, 30 de setembro de 2020

CULTURAS E CAMINHOS

Festa para Tobias e Carminha (Arquivo JRS)



     Eu digo que trabalho, devoção e festa sempre estiveram em igual proporção na vida do povo caiçara. O trabalho era questão de resistência, criatividade e sobrevivência. A devoção sustentava a esperança e era alento nos temores. A festa sempre foi manifestação da alegria, agrado a alguém e agradecimento pela vida. "Não havia preguiça para festa alguma. Nem que fosse depois da derradeira serra ninguém esmorecia quando a festa era anunciada", me contou um dia o Dito Neves, marido da Joaninha, em cujo terreiro chupei muitos cajus  no tempo de criança.
    
     De vez em quando acontecia de alguém ter motivo para falar mal de alguma festa. O "velho" França, depois que passou um tempo em Santos, servindo em quartel, voltou para Ubatuba recebendo um salário sem precisar trabalhar. Era como se fosse uma aposentadoria de militar. Não sei o porquê, nem quem arranjou isso para ele. Só me lembro dele dizer que o nosso povo era muito folgado, fazia muitas festas etc. Alguém, já naquele tempo, me fez ver o seguinte: tem gente que vive às custas de quem trabalha, mas fala mal dos trabalhadores. Notei isso quando o saudoso Herondino esculachou o "velho" França: "Alguém como você é gente sem vergonha na cara. Bastou alguns anos vivendo entre os soldados para poder viver o resto da vida recebendo sem trabalhar. Eu, no seu lugar, me retiraria numa dessas grotas para deixar de inticar com os outros que seguem no suor pelo pão de cada dia". 

    Eu confesso que, nas poucas oportunidades em que avistei o "intiqueiro" em momentos de festa do nosso povo, ele estava sempre de lado, sem ninguém nem para prosear. Nem sei como conseguiu se casar. Resumindo, no dizer do tio Francolino: "O França cutuca mais que ispim de brejaúba. Vivendo sem esforço, só mamando, agora não para de inchar. Está quase um baiacu de ispim, sem ninguém fazendo questão de ficar do lado dele".

    Hoje, depois de tanto tempo, consigo identificar a condição do pensamento do "velho" França: ele foi envolvido por uma ideologia, por ideias de gente rica que tem a necessidade de desmerecer os mais pobres. Causando o rebaixamento de muitos, alguns poucos se dão bem. É assim que essa moral é cultivada para oprimir e extinguir formas culturais diversas, tal como a nossa. O Dito França e tantos outros servem como exemplos de aliados dos ricos, de gente que precisa oprimir para existir. Se vivemos situações de miséria cultural e material, se não valorizamos devidamente a nossa cultura hoje, é porque não fizemos as leituras necessárias em outros tempos. Basta! Vou parando de inticar por aqui!

(Em tempo: a filha do França vive ainda nos dias atuais recebendo o salário que era do finado pai. Pode isso?).

terça-feira, 29 de setembro de 2020

JARDIM CHEIROSO

 

Flor cheirosa (Arquivo JRS)
    

    Eu já escrevi a respeito do terreiro da vovó Eugênia em mais de uma ocasião. Assim que chegava a primavera, uma flor saía da terra, do nada. Na verdade, suas folhas desapareciam no inverno, como se a planta findasse o seu ciclo. Mas, num dia de setembro, antes do dia clarear de vez, um perfume suave invadia nossas narinas. Então nossos olhos se fixavam rente ao chão e enxergavam a maravilha denominada por todos daquele tempo como Flor do Japão. O motivo? É que ela surgia de dentro da terra. Logo, se o Japão fica do outro lado da Terra, então ela viria de lá. Mais tarde aprendi que ela também é conhecida como Flor da Ressurreição. Hoje resolvi fotografá-la para que todos possam apreciar tal maravilha comum nos terreiros caiçaras, dentre outras plantas do jardim. É pena que o cheiro não passe pela imagem.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

CONTEMPLAÇÃO

Beija-flor (Arquivo Anilsi)

Em dias de mentiras oficiais;

Chovendo ou não;

Com rumores ou silêncio:

Eu  busco oportunidade.


Olho pela vidraça,

Contemplo passarinho no ninho:

Coisa comum no mato,

Momento raro na cidade.


Um capricho natural,

Uma eternidade genética.

Desde sempre assim faz:

Técnica sem idade.


De repente, num voo veloz,

Foi-se a mãe de penas brilhantes.

À vista dois ovos acomodados:

Por um instante, numa brevidade.


Saiu a beijar flores,

Precisa se manter viva:

Tem compromisso com vidas;

Alerta a necessidade.


O retorno se dá num piscar de olhos:

Meu jardim é logo ali.

Acomoda-se em sua missão

Em beleza e felicidade.


Seres novos chegarão;

Há flores e seres esperando no tempo.

Eu, minha família, eles e as flores...Vidas.

Sigo espreitando, renascido na verdade.



terça-feira, 22 de setembro de 2020

MELHORA COM NINHO DE ARAPUÁ

 

Lá longe, nem se avista quase (Arquivo JRS)

    "Nós fomos naquela lonjura buscar uma erva. É que só lá na ilha tem. Saímos cedo; éramos três remando. Quase meio-dia durou a travessia. Melhor dizendo: saímos no clarão e chegamos quase no sol a pino. Isso porque o mar estava liso, sem nenhuma ventarola. A canoa ficou amarrada na poita deles: uma bola grande com algumas letras. Encostou ali um dia; pode ter se desgarrado de algum navio que passou por fora, segundo os moradores. Caímos na água e subimos pelo estivado mais perto. O Batengo estava agachado; nos recebeu com um pito na mão. O cheiro bom do fumo estava no ar. Os outros se esconderam como é o costume deles. São vergonhosos ou não desejam gente para não estragar aquela paz.  Apareceram depois, aos poucos, meio ressabiados. Logo ali, subindo pelo mesmo caminho, chegamos na casa. Dentro estavam os outros (mulher e crianças) do Batengo. Ela explicou onde tinha o mato para nós, a erva que fomos buscar. Bastou subir mais um pedaço do morro, até uma área de macega com muita macela e um marco de duas pedras: uma maior e a outra menor. A grande era um granito verde; a pequena era inteirinha branca, dessas que dizemos ser pedra de vidro. Entre as duas tinha a tal erva que Josefa precisava para depois do benzimento. A nossa tarefa era levar aquele mato. Logo ajuntei uma massaroca, uma boa braçada. Chegou a metade da tarde. O tempo virou, veio vento forte. A nossa canoa foi puxada para a terra firme. O jeito era pernoitar com eles, na ilha. Ainda não tinha escurecido de vez quando jantamos: era comida como a nossa, de caiçara. Farinha e peixe ensopado. Uma panelada de cambeba. Além de banana verde, havia uns fiapos escuros pelo meio do caldo. É que eles, a gente de lá, tem o costume de juntar um tipo de limo da costeira, secam no jirau para depois usar no cozido. Dá um gosto a mais na comida. Só não usam no marisco, dizem,  porque este já tem o gosto do limo na carne. Depois da janta, a companheira (Lídia) do Batengo explicou que aquele mato colhido por nós é amargoso, solta um pitiu, mas se fizer amassado com ninho de arapuá, um aroma doce se espalha pelo ar e  se torna melhor de beber. Escutei bem a recomendação dela: 'Faz desse jeito pra mode tomá com gosto e fazer mais efeito, curar ligeiro. É certo: melhora com ninho de arapuá'. Tudo isso eu transmiti à nossa benzedeira quando chegamos de volta. 

    Ainda a gente estava na prosa da mesa, tomando um cafezinho depois, quando chegou o primo Eugênio trazendo umas esteiras de taboa da casa dele. Proseou um pouco só; nem uma hora depois se foi pela escuridão.  Logo dormimos todos. No escuro da madrugada as brasas do fogão foram reavivadas para o nosso café antes de deixarmos a ilha. Juntamos tudo o que era nosso, agradecemos e embarcamos para remar tudo aquilo de novo. Que não é fácil ser ilhéu isto eu posso garantir!".

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

ERA GARNÉ

 



Baguary de Fora (Arquivo JRS)

    O mar estava ali, bem na porta. Comida também tinha, era o que bastava para as forças necessárias de cada dia. A pinguinha sempre surgia de algum lugar, trazida por alguém para distrair a vida dos pescadores. Ali Garné vivia o seu tempo não sei por quanto tempo, pois desde sempre eu tenho a lembrança dele sendo pescador naquele lugar, no pedaço de costeira conhecido como Baguary de Fora. Outros parceiros vez ou outra lhe faziam companhia, dormiam por ali.

    Desde sempre os pescadores usaram o Baguary como referência de pesqueiro, com bons parcéis e tocas fantásticas. Lugar de garoupa, de sargo e de tantas outras espécies cobiçadas por quem vive do mar. Há muito tempo a pesca de cerco foi instalada ali. Hoje não tem mais. Na falta de praia, uma estrutura (estivado) feita em paus roliços sobre as pedras da costeira serve de rampa às canoas, onde sobem e descem para a água, em busca dos peixes. Dois caminhos garantiam o acesso ao Baguary: um do alto do morro do Cedro e outro da Ponta Grossa, quase chegando no Farol. Quer um lugar bonito? Deseja sentir melhor a natureza? Recomendo, dentre outros, o Baguary de Fora, uma formação de relevo diferente. Tio Genésio dizia que baguari é coisa que não está de acordo. Quero entender que significava algo que destoa daquilo que era normal. No caso, entre um amontoado de rochas resistentes à força do mar, um ambiente diferente se formou. Árvores grandes, plantas rasteiras e até coqueiros se fizeram aparecer a partir de condições que pareciam impossíveis à vida. É certo: a natureza insistiu muito para se fazer daquele jeito, naquela beleza sem igual.
    
    O percurso da Ponta Grossa, a partir do Canto do Acaraú,  sempre me agradou muito. Andei bem por aqueles morros e costeiras desde antes dos vinte anos de idade. Vi as modificações acontecendo (e continuam!). Por vezes, de repente, punha a mochila nas costas, me despedia da mãe e lá me ia na caminhada. Quase sempre levava café, açúcar e pão para um café durante a prosa com o Garné e possíveis companheiros do Baguary (Zeca, Bidico, Tico, Jango...). Neste ano, meses atrás, Garné se foi. A paz daquele lugar agora é outra, sem o amigo de tantas prosas, das boas risadas da Era Garné.

    

    

domingo, 20 de setembro de 2020

AQUELA CASA

Na beira da estrada (Arquivo JRS)


             Quem faz casa na beira da estrada tem sina de acolhedor, pois quem viaja recorre sempre por um copo de água, uma informação ou simplesmente larga pelo chão o fardo num instante para prosear

           O dia amanhecia. Bem na frente daquela casa eu parei para esperar o Chico Lopes que se dirigiria ao pé da serra, ao sítio. Eu iria para conhecer a cachoeira das Pedras Brancas. Sentei ali, na beira da estrada; poucos carros passavam naquela momento. Abri a mochila e puxei de caderno, máquina fotográfica e caneta para registrar aquele momento. Deduzi que há tempo ninguém morava ali, nem zelava pela área como seria merecido. Notei o estilo e os materiais usados na obra: tudo moderno em outros tempos. Foi feita bonita, acolhedora... Sem cerca alguma para dizer que confiava nos passantes e não recusava acolhida. Uma janela antiga requadrada com esmero. Em meio à natureza, ela parecia querer também ser notada. Assim a humanidade foi trabalhando, modificando a natureza: pedra foi cortada para alicerce, barro virou tijolo e telha, árvore virou porta, janela, caibros, vigas, ripas... A casa se tornou proteção ao homem, à mulher e às crianças que se multiplicaram sobre mais espaços da natureza, da mata ao redor. O tempo passou, as pessoas se foram e os sentimentos de zelo pelo belo foi se apagando. Teve pintura? Agora não tem mais. Flores abundavam o terreiro? Agora é só terra seca e folhas secas ajuntadas pela ventania. O que eu faria? Reformava seguindo conforme a originalidade e a tornaria aquela casa novamente agradável, capaz de despertar contemplações de todo mundo que estivesse passando por ali. Depois de tudo pronto, de um jardim colorido, um banco seria permanente para boas prosas. Um cachorro, um gato e galinhas dariam movimento ao espaço. Pensava tudo isto quando o Chico chegou batendo em minhas costas. "Vamos?". Embalado na imaginação, prossegui: "Senta aí, compadre. toma um cafezinho que acabei de passar. E aproveita que a minha amada ainda dorme, mas aprontou ontem umas broinhas de milho que não tem como não gostar". Ele, vendo a casa e notando o caderno com coisas escritas, sentou ao meu lado. Me escutou e acrescentou a sua luminosidade ao meu olhar, àquela casa da beira do caminho de antigamente, onde muitas tropas passaram com suas cargas valiosas a enfrentar a dura subida e descida da Serra do Mar.

sábado, 19 de setembro de 2020

SE NÃO HOUVER CHIFRE EM CASA

 

Coentro, hortelã, cebolinha...Nosso espaço (Arquivo JRS)


       De onde vem todo esse conhecimento de mato, de ervas, que a cultura caiçara tem? "Tem mato para tudo", diziam os mais antigos. "É sabedoria dos caiporas, dos pretos e da portuguesada". Assim como antigamente, as mulheres continuam à frente nesta particularidade de conhecer os matos e as suas funções na culinária e como medicamento. Em toda a minha vida eu conheci várias benzedeiras caiçaras, mas apenas um benzedor: o Velho Mariano, do Ubatumirim, que veio findar seus dias no bairro da Estufa. Após o ritual deles e as rezas, ninguém deixava o lugar sem levar uma braçada de mato para fazer remédio. A cura se completava assim

             Nossos quintais eram repletos desses matos, dessas plantas que não podiam faltar porque sempre havia precisão para usar na comida, fazer um chá, um emplasto etc. Quase sempre um cercado de bambu (ou de aproveitamento de pano de rede velha) protegia nossas ervas, sobretudo das galinhas ciscadeiras. Era o espaço das hortelãs (gordo e de bicha), dos coentros (miúdo e do mato) , da alfavaca, da melissa, do capim cidrão, do poejo, do guaco, da cidreira, do alecrim, do favacão, da arruda, do manjericão... Entre elas, ocupando o mesmo espaço se via couve, cebolinha, tomate, pimenta, salsa e por aí vai. Entre as flores do terreiro e pelos caminhos também abundavam dessas plantas que nasciam levadas pelo vento, por bichos e por nós também. Era comum avistar alguém fincando galhos ou jogando sementes nos locais das nossas andanças. E tinha toda aquela riqueza de plantas que abundavam na capoeira, depois do cisqueiro. A gente, a bem dizer, tropeçava em caninha do brejo, pariparoba, urtiga, aperta ruão, malícia, sete sangria, quebra pedra, gervão, melãozinho, prumera, boldo de todo tipo, erva baleeira, ervas diversas (cavalinha, de bicho, de São João, de Santa Luzia etc.).

               Nunca podia faltar algumas folhas de alfavaca no preparo de qualquer espécie de cação. Na carne de galinha, o sabor que realçava era do hortelã gordo. Coentro do mato entrava em quase todos os tipos de peixes que fossem cozinhados. "Zezinho, vá lá fora e me traga três folhas de coentro. Escolha das maiores". Assim, a partir da mãe, das avós e com tanta gente mais, fomos aprendendo disso tudo. De vez em quando se escutava frases do tipo: "Comadre, tendes aí hortelã, daquela de bicha [lombriga]? É que tenho reparado no Tãozinho que se encontra muito aíbo, empalamado. É só bater a vista que se nota. Deve ser ataque de bicha. Na semana que começa amanhã, irei preparar chá de hortelã com pó de chifre para ele beber de tarde". E por que tinha de ser na parte da tarde? Vovó Martinha me explicou: "É que, depois de atacar a comida do almoço, as bichas ficam desesperadas de sede, dando até coxa nas tripas. Só que, em vez de água, quem conhece faz elas tomarem chá de hortelã nas fuças. Se tiver fervido com um punhado de chifre torrado aí que resolve mesmo! Pode ser usado sementes de mamão moído se não houver chifre em casa e nem na vizinhança".

                    Talvez por tudo isso, eu, assim que me levanto a cada manhã, dou uma volta no quintal para apreciar as nossas ervas, o nosso mato. "Um pedaço da Mata Atlântica no terreno", conforme o dizer da mana Ana.