quarta-feira, 8 de maio de 2013

SAUDADES



                Há um ano, exatamente isso, nós perdemos duas pessoas que nos marcaram muito: ‘Seu” Mané Hilário e dona Silvia Patural.
O longevo caiçara da área central da cidade foi muito especial, sobretudo pela memória privilegiada e pelos causos de nossa terra. Já a francesa que adotou a nossa cidade desde a metade do  século passado, tem uma história de muita determinação, juntamente com o seu engenhoso esposo. Para homenageá-los, republico dois fragmentos de artigos que estão no blog. Foram entrevistas dos primeiros meses do blog (2011).

Sobre a fartura de peixe.
         
          "O pexe em Ubatuba a gente pedia pros consumidores pra compra pra pagá quando pudesse. Os pexe era demais. Era fartura, tinha demais. A gente vinha vendê o pexe. O que sobrava, a gente quando não dava, vortava com ele pra casa pra escalá. Quando tinha gente que queria, a gente dava, a gente trocava. Naquele tempo, no Perequê-açu, não havia muita casa. Aqueles que não tinha cana pro café trocava aquele fexe de cana por um pexe e levavam embora. Faziam a troca.
         A tainha era demais. Era trezentos mil-réis o mil. Uma tainha de duzentos réis, um tostão que a gente vendia... Escolhida a tainha grande de ova pra vendê, né? Que nem a sardinha. Sardinha era mil e duzentos o mil. Sardinha galhuda! Não dessas que vende hoje!  Sardinha galhuda que nóis chamamo, né? Porque tem trêis espécie de sardinha. Aquela tranqueira de pexe que a gente vendia tudo na beira do mar. A pesca era do corrê do cais pra dentro; tudo quanto era pexe: espada, corovina, goete, pescada... Era tudo quanto era pexe!
         Nossa mãe! Na puxada de rede na preia você  não podia tirá de dentro d’água, na preia puxá! Quando a rede vinha num cabo por banda, você não podia puxá a redada. O redêro, o prático dizia: “Aí vem coisa, no tempo da lula, no centro da rede” Perguntavam: “O quê, titio?”. “A correnteza que a rede vem trazendo é pexe!”. Quando chegava na beira da preia, às veiz não andava; encalhava. Era bagre urutu, era pescada amarela, pescada bicuda que nóis chamava, era pescada branca, obeba, gordinho... Eu com um primo-irmão, o Antonio Joaquim, que nóis chamava de Timbango, nóis dois sozinho, com Deus em primeiro lugá, demo uma redada de obeba, matamo seis mil, não pudemo alá a rede. Eu disse: “Antonio, ponha a rede num lado e de outro, vire as costas e não olhe para tráiz do que saí. Deixe que saia o que quisé saí”. Empatolemo a tralha da cortiça e do chumbo e fizemo força.  Que nada de rede vim! Era só obeba! Cada uma assim!"


Franceses sonhando em terras de Ubatuba (Parte VI)

                "Após seis anos plantando, com vários funcionários (Dito Rolim, Melentino...), a plantação estava em franca produção, começando a dar lucro. Surgiu a necessidade de aprimorar o transporte dos produtos. Era o ano de 1958 quando compramos, na Casa Granadeiro, em Taubaté, um trator. Questão: Como trazer o trator para Ubatuba, depois levá-lo até o Ubatumirim? Solução: Desmontá-lo todinho, transportar pela rodovia e pelo mar, e, remontá-lo na roça, onde ficou definitivamente.
        Aconteceu a melhoria na estrada da Sesmaria para o trânsito adequado do trator. Para levar o trator até o bananal, Jean-Pierre abriu uma estrada de sete quilômetros, sem máquinas, apenas com foices e enxadas. No local denominado “Gurita” foi preciso fazer uma ponte de madeira que fosse bem resistente para que pudesse passar o trator puxando a carreta carregada de bananas. Ele ainda ensinou um empregado chamado Freitas a dirigir o trator, dando algumas noções de mecânica. Pensava, num futuro próximo, ensinar outros rapazes e montar um curso para a formação de técnicos agrícolas. Foi uma grande novidade. Era gostoso ver o trator repleto de meninos, com o meu marido passeando com eles; lotavam a carroceria. Essa condução era atrelada a um carroção que escoava toda a produção para a praia, onde um barco grande, cujo nome era Manaus,  comprava tudo”.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

SABE AQUELAS PONTES?

Foto: Olha ai , uma foto que mostra a nossa famoso Serra do Mar...A caminho de Taubaté, assim era a Rodovia Ubatuba - Taubaté, claro que eu não sei quem está no carro, nem o ano da foto eu sei, tentei descobrir, mas fica no ar...E você saberia dizer de que ano é esta foto ?....
Rodovia Oswaldo Cruz; serra de Ubatuba: reforma do início da década de 1970

               
Uma das pontes do Nenê Teodoro- Bairro Pé-da-Serra (Arquivo JRS)

               O amigo Dito Chieus, mesmo após de ter se aposentado da Estação Experimental do Horto Florestal, depois de décadas fazendo os registros diários das condições atmosféricas da nossa área, continua nas suas cercanias, com moradia e produção de mudas, principalmente de palmiteiros, na margem da Cachoeira dos Macacos. Conforme eu já disse noutra ocasião, ele é um dos descendentes dos fabricantes da pinga Ubatubana, cuja sede era na Fazenda Velha, no caminho do Monte Valério.


                O Dito é muito bom de prosa! Hoje, depois de publicar uma imagem da serra por ocasião de reforma no começo da década de 1970, resolvi escrever a sua contribuição a respeito das pontes  antigas da Rodovia Oswaldo Cruz, já no Pé-da-Serra. A foto inicial certamente ajudará na recordação de muitos. Os demais passarão a reparar de agora em diante. Assim espero!

                “Sabe aquelas pontes, Zé? Elas não foram as primeiras, mas já têm mais de cinquenta anos. As primeiras, de 1930, eram planas e tinham o inconveniente de, em tempos de chuvas fortes, serem alcançadas por ‘jangadas de árvores’ que a correnteza trazia. Corria até o risco de serem arrancadas. Prevendo isso, um funcionário do D.E.R (Departamento de Estrada de Rodagem), de Taubaté, chamado de Nenê Teodoro, projetou as pontes em arco. São as que foram poupadas pelas várias reformas e ainda permanecem ali, nos permitindo histórias e memórias. O irmão dele mora no Ipiranguinha, perto daqui”.

                Mais coisas eu escutei do tranquilo homem. O que eu pude comentar foi o seguinte:

                “Pode ser que, em alguma ocasião do processo civilizatório do nosso município, surja uma equipe de governo decente, que considere importante o turismo cultural. Nessa ocasião futura, o guia turístico deve encerrar a sua fala com o mesmo destaque feito pelo Dito:

                “O Nenê Teodoro não era engenheiro, nem arquiteto! Era só um homem que enxergava bem o problema e deu a melhor solução naquele momento. O serviço foi bem feito. Prova disso é que as pontes continuam firmes sobre a cachoeira”.

sábado, 4 de maio de 2013

QUE BOM!

"O menino viu por ali um osso de perna de carcará" (Arquivo JRS)


                Barollo e Leny: sejam bem-vindos ao blog!

             Que bom que sempre existiu alguém a contar histórias (as suas e as dos outros)!
                Na minha vida, como já disse em diversas ocasiões, os meus avós, sobretudo Estevan e Eugênia, eram os pontos de atração de nossas fantasias. Deles ouvíamos, sobretudo nos serões, as histórias da nossa terra, de personalidades ímpares, mas também as clássicas devidamente adaptadas ao nosso contexto. Um exemplo? A história de João e Maria!

                “Crianças; prestem atenção! Joãozinho  e Mariquinha eram duas crianças da idade de vocês. Juntos com um pai trabalhador e uma mãe amorosa eles eram muito felizes. Porém, não demorou muito para uma doença chamada de peste espanhola chegar naquele lar. Foi o que matou a mãe. Houve uma choradeira porque a mulher era muito querida. Todos da vizinhança sentiram muito. Se perguntavam: ‘O que seria, agora, do viúvo e das duas crianças?’.    Não demorou muito para que alguém se oferecesse como madrasta dos infelizes. O pai aceitou porque precisava de alguém que cuidasse deles.
                A madrasta logo se revelou uma mulher terrível. Batia nos dois, escondia a comida em vez de repartir, mentia para o pai caluniando as crianças.
Chegando um tempo de carestia, quando a fome andava por aquele lugar matando muita gente, a mulher, depois de muitas maldades e mentiras contra Joãozinho  e Mariquinha, propôs ao marido que os enteados fossem abandonados na floresta, que é uma mata muito fechada com bichos terríveis que nem na Arca de Noé foram aceitos. O pai, temente a Deus, se recusou a fazer tamanha maldade. Mas a megera continuou insistindo, dizendo que era mais provável eles sobreviverem no mato do que em casa, que a fome já rondava por ali, que Deus, tão cuidadoso até dos animais, também cuidaria das crianças na mata virgem etc. E a mulher maldosa, tal como a Eva no início dos tempos, conseguiu o seu intento: o homem decidiu levar as crianças para abandoná-las numa serra distante.
                Numa manhã bem bonita lá se foram os três ao mato  cortar palmitos e recolher coco pati. Era época dessa gostosura, quando ele começa a brotar e fica bem docinho. As crianças se animaram aparentemente, porque Joãozinho escutara os planos da madrasta. Mariquinha não sabia de nada.  Ardiloso, o menino, em sua bissaca, onde carregava pedrinhas para atirar com o bodoque, conforme iam andando, soltava uns pedregulhos esbranquiçados, bem parecido com aqueles que tem no Rio do Inhame, para marcar o caminho. O pai, deixando os filhos sentados numa clareira, foi se afastando sorrateiramente, mas pesaroso do ato que fazia. Bem triste se dirigiu à casa. A perversa companheira se mostrou contente pelo feito. Mas a alegria durou pouco. De repente, do meio das taquaras surgiram as crianças. Fingindo tristeza pelo pai tê-los perdido na mata, a madrasta quis saber de como encontraram o caminho de volta. Mariquinha, coitada, antes que o irmão a impedisse, contou o ardil das pedrinhas. Bastou segui-las pelo chão.
                Passado um tempo – e continuando as maldades! – novamente o pai levou as crianças para serem abandonadas. Só que desta vez, sem poder catar pedregulho, Joãozinho encheu a bissaca  de pedaços de pães velhos. De novo a repetição da história. Porém, ao tentar achar o caminho de volta, uma surpresa: os pássaros, sobretudo uru e jacutinga que tinha demais, comeram os nacos de pães. Agora sim estavam perdidos!
                Mariazinha ainda chorou bastante porque tinha medo da escuridão e dos bichos. Pior foi quando a mosquitada chegou no serão, sem respeitar o abrigo feito de folha de guarecanga. Tudo era como um breu. Só em torno deles a luminosidade era intensa. Parece que Deus mandou todos os vaga-lumes para clareá-los naquela imensidão escura e medonha. Ao acordar, pegaram o ‘de comê’ ali mesmo, de um cambucazeiro. Era mês de fevereiro, já no final, quando essa e outras frutas abundam na mata.
                Os irmãos, andando um dia inteiro, novamente tiveram a ramagem das árvores como teto. No outro dia, não longe de onde pousaram, avistaram uma casa de sapê e uma casa-de-farinha soltando fumaça. Na hora se lembraram de que o pai contava: ‘No alto daquele morro mora uma bruxa velha que come crianças’.  Mas a fome, a saudade de uma farinha torrada e de um beiju venceu os dois. De longe, escondidos, viram que a mulher forneava. Perto dela um bichano miava. O Joãozinho era de muita esperteza! Pegou uma vara pontuda de taquara e subiu na cobertura de sapê. De lá, após afastar a palhada, usando a taquara ele espetava o beiju e puxava. Que gostoso! Enquanto isso, a bruxa ralhava com a gata: ‘Chipe, chipe, minha gata. Depois de cozido tu comerás!’. É que ela notou o beiju sumindo e pensava que a gata estava comendo. Enquanto isso, os irmãos já estavam empanturrados sobre a cobertura. Aí o pior aconteceu: os dois, distraídos pela lambança, caíram dentro da casa-de-farinha. A velha, depois do susto, entendeu tudo. Quis saber da história das crianças.
                Após escutar atentamente, com os olhos brilhando, ela fez a proposta: ‘Vocês ficam morando comigo. Eu já sou velha, não enxergo direito e não tenho ninguém a ser a gata. Onde come dois come quatro!’. Joãozinho e Maria toparam. Assim foi passando o tempo. O menino que não era nada bobo, não demorou muito para cismar de alguma coisa errada na relação. É que a velha, a cada semana, pegava a mão da Mariazinha e, depois de apalpá-la resmungava: ‘Ainda está muito magra. Preciso dar mais comida aos dois’. Então era verdade o que o pai contava sempre. E agora? Eles, recebendo mais comida, feita num enorme caldeirão de ferro, inevitavelmente engordariam. Olhando para o chão, o menino viu um osso de perna de carcará. Nisso veio a ideia: a partir da próxima semana, em vez do dedo, a bruxa vai tocar esse osso. Vai dar certo! Osso nunca engorda! Deu certo! Certíssimo! A cada semana o mesmo resmungo após o ‘exame do dedo’: ‘Tá sequinho ainda. Preciso dar mais comida’. E assim continuou até o dia infeliz que o tal osso desapareceu. A velha ficou satisfeita: ‘Agora sim! Vocês já estão prontos! Fiquem aqui que eu vou colocar mais água para ferver. Tempero (alfavaca, coentro e pimenta) não falta no cisqueiro!’.
                Enquanto o grande caldeirão fervia, espalhando um cheiro bom pela casa, Joãzinho, de combinação com a irmã, deu um empurrão na velha maldosa. Ela caiu gritando dentro da água fervente. Deve ter morrido. Só que a carne, de cracachenta que era, não amaciou nunca. ‘Igual carne de urubu velho’. Os dois sumiram no mato. Nem espinho de brejauba atrapalhou a desabalada corrida. A gata foi atrás. Não demoraram muito para encontrar o pai. Ele estava desesperado, tinha se arrependido. Mandou a mulher cruel embora e, há meses, procurava os filhos pela floresta. Até na Serra da Bocaina já tinha vasculhado tudo. Estava barbudo, todo sujo e esfarrapado. Os três se abraçaram, riram e choraram muito.
                Só sei de uma coisa: até hoje eles são felizes numa badeja lá no meio da serra. Nunca mais se separaram. Em volta da casa tem de tudo plantado por eles. Que lindeza é o mandiocal deles!”.

                E no fim de uma história assim, nós todos suspirávamos: “Ah, que bom!”

quarta-feira, 1 de maio de 2013

TEM CAIÇARA NA LINHA!


Rio entre as marinas construídas na praia (Saco da Ribeira)

Eis o tempo em que o pescador precisava de um rancho no jundu!



            O meu primo Claudio, um caiçara do jundu da Praia da Fortaleza, criado na Praia do Saco da Ribeira, mas que está na capital carioca desde 1981, após ter lido o texto anterior (Terra, pó e miséria), deu a sua contribuição, via e-mail, a respeito da exploração dos mais pobres.
            A Praia do Saco da Ribeira , conforme eu já descrevi noutra ocasião, era um paraíso de siris e tainhas. Ali nasceu a marcenaria naval com a colônia japonesa. Também dali temos a referência de Armazém São João, cujo dono –João Glorioso – era um empreendedor da pesca. O Claudio poderia escrever um livro em relação às injustiças que estão na base do complexo turístico marítimo que cobriu aquela praia, onde jogávamos futebol nos finais de semana (quando a maré permitia).

Infelizmente essa não é só a realidade do caiçara, mas da maioria dos brasileiros desassistidos principalmente do básico (sério), educação, saúde, segurança, cultura. Junte-se a isto a falta de uma liderança responsável na comunidade, a avalanche descomunal da cultura enlatada na mídia em geral, a lavagem cerebral levando ao consumismo desenfreado, e vamos ter muitos mais exemplos, como o do Sr. Guilherme, pescador, que não pode construir um rancho na Praia do Saco da Ribeira para abrigar sua canoa, pois a Marinha não permitia, chegando a derrubar o rancho, mas para surpresa de muitos, não demorou para que toda a orla do Saco da Ribeira se transformasse em um gigantesco Iate Clube de ponta a ponta da praia. Então, Zé, nós vivemos e vamos continuar vivendo na era do Tubarão engolindo a Sardinha; como sempre a lei do mais forte prevalece, mesmo que moralmente eles sejam uns fracotes. Grande abraço!!!! 

segunda-feira, 29 de abril de 2013

TERRA, MISÉRIA E PÓ

O saudoso mestre Bernardino do Pulso na puxada de rede


Analisando um período que eu conheço, posso afirmar que entendo melhor a nossa parte, enquanto caiçaras, na engrenagem capitalista da sociedade moderna.
                A participação/inclusão do universo caiçara como base de enriquecimento aos outros, aos “de fora”, se deu graças às nossas praias, aos nossos recursos naturais e à situação de penúria. Me recordo de ter lido mais ou menos isto, numa recomendação de Washington Luiz, no primeiro quartel do século passado, quando estava como governador do Estado. Na ocasião ele visitava o Litoral Norte: “É melhor que os moradores dessas paragens subam para o planalto. Lá tem emprego e boas condições de se viver. Basta ver a quantidade de nordestinos que chegam diariamente ali. É sinal que lá tem condições de sobrevivência para todos que forem chegando. Vendo a situação precária de vocês, acho que a melhor solução é o pessoal deste litoral fazer o mesmo”. Foi uma recomendação oficial para que os nossos antepassados migrassem, se afastassem do mar. Bonito governante!
                É lógico que as belezas naturais, na ótica da exploração de mercados, deveria receber outra atenção. Decorreu disso a vinda das estradas (1930, 1950, 1970), dos turistas e dos especuladores imobiliários. Pronto! As terras caiçaras, partindo das áreas de jundus, foram “negociadas”! Era como se dissesse aos  pescadores-roceiros, distantes há séculos dos ideais capitalistas: “Seus problemas estão resolvidos”. Ora, bem sabemos que aí é que eles começaram. Afinal, era um plano de exploração bem planejado, com vilões dos mais pomposos nomes, “seus doutores” etc. Nisso, alguns filhos da terra, com uma cobiça mais aguçada, foram devidamente aliciados ao ponto de “venderem a própria mãe” para fazer um “pé de meia”. É por isso que em quase todas as famílias se escuta uma história escabrosa (de irmão traidor, de tio enganador, de marido oportunista etc.). No fundo, no fundo...estava o desejo de uma vida mais folgada, que não precisasse suar diariamente para conseguir o seu sustento. Havia também o desejo de dominar e de lucrar a partir da dominação do outro.
                Ah! O maldito trabalho! É forte isto? Esqueceu o velho princípio bíblico: o trabalho como maldição pelo pecado de Adão? Foi nisto que deu comer e gostar da fruta ofertada pela Eva.
                Enfim, não tem como desconectar a nossa história da história dos modos de produção. Nisto estava certo o velho Marx! Quando os meus pais nasceram prevalecia um modelo de trocas, de trabalhos coletivos, de terrenos com divisas cantadas: “A minha terra vai daqui até o lugar onde tem um boi pastando”. Vovô Estevan vivia repetindo que “O dinheiro era custoso, mas o de comê tinha em fartura”. No meu tempo, quando os primeiros loteamentos já nasciam nas principais praias, às margens da rodovia, o caiçara ainda pescava e plantava, mas a juventude ansiava por “um emprego fichado”, que garantisse direitos trabalhistas, previdência social “INPS” etc. Na falta disso, a venda de posses, de partes da terra secularmente ocupada para a lavoura, eram negociadas para se ter uma situação de alívio. Assim compravam um fogão a gás, um armário “cristaleira”, uma panela de pressão, uma televisão, um rádio novo etc. Os mais ousados até adquiriam um carro “de causar inveja”. Quanta ilusão! Iam-se os bens e as terras que antes garantiam a subsistência básica.
                A terra virou moeda de troca. Não precisou muito esforço para convencer muitos caiçaras de que “um dinheiro pela posse” resolveria seus problemas, seus pesares. Além disso, surgiram os grileiros, os especuladores que projetavam os seus lucros imobiliários. Certamente pensavam: “Um lugar bonito desse não é para pobre”.  Hoje estamos nisto: o caiçara é apenas dono de sua força de trabalho. A sociedade é isto: exige trabalho e paga o suficiente para a sobrevivência. Da farinha de mandioca agora só restou a farinha. O nóinha, filho de um caiçara “das bandas do norte”, guarda noturno num condomínio, grita pelas ruas próximas de minha casa: “O pó é a solução”. E ainda me pergunta: “Você não acha, teacher?”

sexta-feira, 26 de abril de 2013

ONDE VIVERAM OS PIRATAS

Arte da Maria Eugênia


                A minha amiga Regina Natividade, há coisa de duas décadas, esteve exercendo o magistério num ponto isolado da Ilhabela. Graças à Rê eu conheci o Saco do Sombrio e aquela maravilhosa caiçarada. Gente boa demais!
 Para chegar  no Sombrio só de embarcação. Os “caminhos de servidão” que, noutros tempos ligava aquele pessoal às outras comunidades, já desapareceram na Mata Atlântica. Das gerações que por eles trafegavam quase já não existe ninguém. Os causos e as histórias desses caminhos estão nos últimos suspiros. A chegada das canoas motorizadas e dos barcos pesqueiros levou a isso.
                Pois bem! Nesse lugar, onde poucas famílias ainda resistem,  apesar das muitas dificuldades, eu escutei pela primeira vez, numa prosa com a matriarca Margarete, os causos de pirataria:
“O nosso lugar foi primeiro um ponto de abrigo para piratas. Eles saqueavam as embarcações nas redondezas. Vinham carregados. Se escondiam aqui, onde boa parte do dia fica sombreado por causa do morro alto que está bem em cima de nós. É de onde vem o nome de Saco do Sombrio. E não é assim até hoje? Nós não vivemos escondidos, mesmo sem querer, aqui?”.
                O Dito, do velho Possidônio, marinheiro que há tempos deixou o Sombrio, acrescentou:
 “Na minha meninice, algumas pessoas com intenções estranhas apareceram nessas bandas. Mergulharam, escavaram em alguns pontos do morro. Quase derrubaram a velha timbuíba da Badeja do Periquito. Sem dizer nada, do jeito que vieram  se foram. Coisa esquisita. Acho que buscavam algum tesouro escondido. Essas histórias vem de outros tempos. Não é bobagem não! Do meu avô eu escutei umas passagens intrigantes. Dizia ele que os mais antigos já sabiam que no tempo d’antes era só piratas que viviam aqui. Então pode ser que ainda exista coisas desse tempo. Só um tesouro muito grande para aliviar a vida do nosso povo”.
       "Ah! Você pode esquecer! Não trabalhe para ver! Farinha, feijão, banana, peixe e tudo que a gente carece não cai do céu!". 
       Sábia a dona Margarete, né?

quarta-feira, 24 de abril de 2013

É TEMPO DE RELEMBRAR

Qual menino  daquele tempo não tinha um bodoque?  (Arquivo  O.Mendonça)


              Danielle Lucas: seja bem- vinda!
             Olhando algumas imagens antigas, vejo crianças “reinando” pelo terreiro. As árvores cheias de galhos eram as nossas preferidas para trepar até as grimpas e lá se balançar. No tempo das frutas aí é que era melhor. Por esta época (abril/maio), a gente vivia cheirando à mexerica. O nhonhô Armiro ridicava suas laranjas.  “Ainda estão verdes! Vocês não botaram reparo não?”. Não, a gente não reparava nisso. Bastava ele se distrair um pouquinho para a gente ficar cutucando a mexeriqueira do cisqueiro. Debaixo de uma sombra qualquer, bem distante dali,  as cascas se amontoavam. Que prazer!
                Nos amplos espaços, num tempo em que nem cercas existiam, fantástico era o esconde-esconde quase no serão. Mas tinha o pega-pega, o passa-anel, a amarelinha, as brincadeiras de roda e tantas outras mais. Ninguém queria parar para tomar banho. As mães gritavam: “Parem com isso que já escureceu”. Ai que preguiça de se esfregar! Assim que estávamos limpos, de chinelinho nos pés e devidamente vestidos, lá vinha a ordem: “Ponham uma roupa quente, de flanela. O frio chegou”.        Nossas roupas eram costuradas em casa, na máquina de costura da vovó.
                Logo chegavam os mais velhos: alguns estavam nas rodas de causos pelo jundu, uns vinham do jogo de bola na praia; outros da faina do mar, de armar tresmalho. No dia seguinte, antes do dia clarear, já estavam embarcados para a visitação. Não faltava o peixe fresco de cada dia.  Toda casa era cheia de gente. Prova disso era a mesa grande, onde todos se reuniam a cada refeição. Pelos cantos havia umas banquetas e uns mochinhos para garantir a presença de toda a família nesses momentos sagrados, onde farinha de mandioca e peixe era presença obrigatória. Quanta sustância! Mesmo assim, já se suspirava pelo porvir: a época da raposa, da gambá. Tempo para preparar cumbus, armar laços e mundéus. Os mais gulosos se lambiam: “A bicha já deve de estar com dois dedos de banha!”.
                A caça aos gambás findava em junho. “É preciso respeitar o tempo de cria delas”. Ninguém desrespeitava o ritmo da natureza, dos ciclos dos bichos. Só o Gusto, conforme eu já contei, ao capturar um gambá fora de época, teve uma reprimenda: “Solta o bicho, Gusto. Já passou o tempo”. E a resposta dele: “Não. Não vou soltar”. “Solta, Gusto. Agora já não presta para comer”.  Foi quando ele nos surpreendeu: “Não tem problema! É para a mamãe!”. Ai que saudade do finado Gusto da praia do Perequê-mirim!