sexta-feira, 1 de abril de 2011

A luz do Oliveira


Esse causo  aconteceu há algumas décadas, quando  a eletricidade ainda era desconhecida em quase todas as praias de Ubatuba. O que salvava a situação eram as lamparinas de querosene, mas que empretejava desde o nariz até o fundo da alma. Os vaga-lumes também davam uma ajuda sempre. Outro recurso eram os fifós feitos de bambu e trapos embebidos em massa de nogas.
Oliveira, meu parente longevo, morava na praia da Fortaleza. Dormia embalado pelo barulho do mar porque a sua casa estava localizada na linha do jundu; quer dizer, pertinho do mar, de onde a visão de toda a baía da Fortaleza, era privilegiada. Ele era roceiro-pescador, casado com a Filomena.
 Esse caiçara levava uma vida normal, mas eis que numa noite apareceu em volta da sua casa uma misteriosa luz. Ela saía sempre ao anoitecer da Costeira do Recife, onde tinha o coqueiral do Hamilton Prado, e se aproximava seguidamente, noite após noite, da casa do Oliveira. O coitado, juntamente com a família, observava aquilo todo arrepiado e assustado. Fazer o quê? No início se punham a orar, mas parecia pouco adiantar: nada afastava a luz e muito menos a explicava. A referida luz era como se fosse uma bola amarela, brilhante, do tamanho de uma bola de futebol. Ela se movimentava flutuando mais ou menos na altura de um metro acima da água ou da terra, parecendo ter vontade própria: para onde quer que o Oliveira fosse ela o acompanhava e cercava o seu caminho. Parecia exigir que o homem não saísse de casa após o serão. Muitas vezes colocava-se na porta como se vigiasse a passagem.
Outras pessoas podiam ver aquela luz, mas somente o Oliveira era o perseguido por ela. Se tentava livrar-se, era atacado. Apanhava mesmo! Era uma surra de dar dó! Certa vez a filha tentou espantar a luz ao vê-la se jogando contra o pai; foi também atacada. Isso durou meses e acabou sem explicação nenhuma. Ou seja, do jeito que veio se foi.
            Questão: o que era a Luz do Oliveira?

quinta-feira, 31 de março de 2011

Há cruzes! Há Santa Casa! Há Santa Cruz de Ubatuba!

        
         Dia horrível este. A companheira, a minha Gal está doente. Todos os sintomas levam a crer que, pela segunda vez, ela contraiu dengue. Daí o motivo que, em todas as oportunidades cobro das pessoas, principalmente das autoridades que se sustentam com nossos impostos, que não cessem de fazer a sua parte.
         Eu faço a minha parte! E continuo não aceitando o que para alguns é normal (carros abandonados na mata ciliar e em terrenos baldios, sucatas a céu aberto, lixos por todo lugar, áreas públicas parecendo “terra de ninguém” etc.).
         Na lista para perícia médica municipal são muitos os causos. O principal foco está no centro da cidade, onde, teoricamente, moram os mais próximos de recursos e de informações.
         Hoje, na Santa Casa, muitos apresentavam os mesmos sintomas da minha esposa. Outro tanto estava com conjuntivite. Ainda bem que, há muito tempo, a Irmandade do Senhor dos Passos pensou na Santa Casa, o nosso único hospital até hoje. “Aos pobres desvalidos”, diziam orgulhosamente os irmãos (católicos), “há Santa Casa”.
         A Santa Casa da Irmandade do Senhor dos Passos foi decisiva na elevação da vila à categoria de cidade, em 1º de abril de 1851, conforme atesta o documento da Assembleia Legislativa Provincial. Ou seja, faz parte dos requisitos para ser cidade: ter cemitério (isso é fácil!), cadeia pública (também não dá trabalho!) e hospital (o que é difícil!). Mais difícil ainda é mantê-lo funcionando satisfatoriamente nos padrões de atendimento, de higiene e de tecnologia. Bom seria se os gestores de todos os tempos, nunca se omitissem em zelar pela vida dos que nesta cidade vivem (ou tentam viver). Hoje eu vi enfermeiras se desdobrando para atender um mundaréu de gente. Uma delas assim expressou a sua angústia: “Eu não importo em atender tanta gente. O que me preocupa é se eles, sofrendo assim, conseguem esperar chegar a vez”.
         1º de abril de 1851: nasceu a cidade de Santa Cruz de Ubatuba. Hoje, século XXI, somente Ubatuba. Ainda bem que a Santa Cruz já não pesa em nossos ombros! Quando, sobre os meus ombros, uma das minhas “crianças” leu este parágrafo, completou:
         - É mesmo, pai! Mas será que desaparecer do nome significa sumir de nossas vidas?

quarta-feira, 30 de março de 2011

Carta em rosa e branco de tinticuia

                  As tinticuias estão floridas, marcando o final do verão (ou, se preferir, o tempo quaresmal). Elas também são chamadas de manacá da serra e de quaresmeira.
         Até bem pouco tempo, no cotidiano caiçara, quando a produção de farinha de mandioca, além da sobrevivência ainda garantia a subsistência, o pau da tinticuia, juntamente com caneveteiro, imbaúbas e outras árvores de crescimento rápido, características de áreas em regeneração, eram preferidas para alimentar os fornos ainda nas madrugadas. Deles saíam farinha, beijus, bolos, milho assado e quirera.
         Lenhar fazia parte do cotidiano. Até se viajava em canoas a outras praias em busca de boas lenhas. Vivi  muitas ocasiões de mutirão para tal tarefa. Qualquer árvore seca era pau de lenha. Em todo quintal, geralmente perto da porta da cozinha, onde ficava o fogão, localizava-se o rachador de lenha rodeado de cavacos de pau. Era uma tora resistente deitada que recebia a madeira a ser cortada. Quase sempre ostentava um machado cravado numa das extremidades como uma tentação, se convidando  para ser usado. Lembrava, recorrendo à literatura inglesa, a espada encantada enterrada na pedra à espera de Arthur, o futuro rei. Por isso que acontecia muitas vezes de passantes pelo terreiro (ou cisqueiro) se exercitarem gratuitamente, além de contribuírem com algumas achas de lenha. Nisto adiantava o lado de alguém, era solidariedade. Em troca, às vezes, até aceitava um “gorpe de café intirume”.
         As tinticuias estão floridas!
          Na serra, a partir de quem olha do campo do Horto, é possível notá-las delineando o antigo traçado da via de acesso aos lugares de Serra Acima. Só de longe ou de cima as divagações se manifestam. Então vemos tropas de cargas, estafetas, tráfego (e tráfico!) de cativos. Lembramos a lenda da Cruz de Ferro, onde Dorinho vingou-se pelo velho pai.
         Virando a serra, onde as matas se regeneram, ondas e mais ondas de tinticuias embalam os viajantes. Olhares devoram tamanha beleza!
         Porém, inveja mesmo eu tenho do Roberto e da Cristina que, sossegados à mesa, num sítio em Natividade da Serra, desfrutam de uma “colcha de tinticuias” maravilhosa no morro defronte. Ontem, 29 de março, foi o aniversário do Roberto. Parabéns! Muitos caiçaras agradecem pelos auxílios médicos deste casal.
         Da terra da maresia mandamos um grande abraço. Até Breve!

terça-feira, 29 de março de 2011

Matadeus e Carioca: seguidores de Jesus.

Todos já sabem da importância da repetição e da tradição oral para aprendermos um monte de coisas. Se isso tem um grande valor hoje, no início do século XXI, imagine em outros tempos, quando até mesmo os livros eram mercadorias raras e poucos sabiam ler. Assim, escutar aquilo que os outros sabiam era de uma satisfação imensa, sobretudo quando éramos, na nossa infância, sedentos por saber e transbordantes de curiosidade em relação ao mundo e às demais culturas. Fiz tal introdução para contar de uma contadora de causo: tia Maria da Barra, irmã da vovó Eugênia.
                A tia Maria era a tia de todo mundo. A sua casa sempre apresentou uma grande movimentação. Quanta coisa linda tinha por ali! Na mesa da sala estava o que mais despertava a nossa atenção: um oratório. A partir dele ouvíamos as narrativas daquela humilde mulher. Lá, partindo de uma gravura onde era retratada a via sacra de Jesus Cristo, aprendi meus primeiros passos na catequese.
                 Aproveitando uma tarde escura, com relâmpagos se derramando na linha do horizonte, a tia Maria falou da construção do mundo em seis dias e do dia sagrado de descanso. Depois explicou que, “da ingratidão humana, veio o pecado e aquele enviado para ensinar os homens a vencerem o mal”. Continuou a titia: “porém os homens rejeitaram o filho de Deus, entregando-o para a crucificação”. Nessa parte, pegando um martelo e alguns pregos enferrujados, ela batia na mesa bamboleante. Era medonho o barulho e a caretas significando os pregos perfurando carne, nervos e ossos. De repente, pegando uma bacia e uma concha, o cômodo vibrava todo com uma grande barulheira. Dizia a narradora que “semelhante barulho se ouviu pelo mundo inteiro quando Nosso Senhor Jesus Cristo expirou” e “as coisas se partiram, no mundo inteiro, semelhante à cortina do templo”. Depois completava: “Vocês não viram ainda aquela pedra imensa lascada sobre a Lage Grande? Pois é! Também é daquele tempo, daquele momento de sofrimento do Santo”. De ato em ato, de fala em fala, recorrendo aos meios que tinha na casa aprendemos tudo (ou quase tudo). Até decoramos os seguidores de Jesus, inclusive os dois Judas: o Matadeus e o Carioca. Bem mais tarde pude fazer as devidas correções; afinal, um era o Judas Tadeu, enquanto o Judas Iscariotes foi aquele que traiu, recebendo por pagamento algumas moedas.

Sugestão de leitura: A obra em negro, de Marguerite Yourcenar.
                                Boa leitura!
                       José Ronaldo dos Santos

segunda-feira, 28 de março de 2011

Zé Bráz e o fim do mundo

                              No ano de 2005, recordando-me de algumas  histórias  contadas  por dona Francisca "Santa",  da  praia  do  Perequê-mirim,  senti  vontade  de   escutá-las   novamente. Telefonei para a sua filha Nilsea e marcamos um encontro. Foi   um   dia  maravilhoso! Saí encharcado pelo banho de cultura que as duas esbanjaram!
            Apresento, hoje, de forma resumida, a façanha do Zé Bráz. Desta família tradicional do lugar eu somente conheci o João Bráz. Os seus descendentes são poucos, e, por enquanto, não mostram interesse pela memória interessante de seus antepassados. Eis o causo:
            Há cem anos, mais ou menos, na praia do Perequê-mirim, morava um solteirão por nome de Zé Bráz. Muitos diziam que ele era meio tonto, desequilibrado, mas não é isso que se conclui depois de analisar os seus muitos feitos. É o contrário!  Ele era muito astucioso, capaz de elaborar os melhores planos com a intenção de pregar boas peças nas pessoas. Era um verdadeiro maroto!
            A história do fim do mundo é a sua mais famosa elaboração. Veja a engenhosidade dele: primeiramente divulgou uma história. Anunciava a todos que “no dia 25 de março o mundo vai acabar. Todos devem se preparar para perceber o principal sinal em cima do mar, pois ele vai pegar fogo e vai ser o fim de tudo”.
            Quando se aproximava a dita data, Zé Bráz preparou uma balsa com talos de bananeira e colheu muito capim seco. Depois, já no referido dia, com sua canoa rebocou pacientemente (e escondido de todos!) aquela jangada até a costeira da ponta da praia da Santa Rita. Bem para lá da Pedra do Sino, num ponto bem distante da praia, de onde os moradores dos vários pontos e praias tinham uma boa visão.
             Naquele tempo as pessoas cumpriam um ritual no serão, ou seja, na chegada da noite todos iam até o porto (chegada dos caminhos no jundu) mais próximo para dar uma última olhada no mar. Até proseavam um pouco antes de se retirarem para o repouso da noite. Sabendo disso desde que arquitetou a ideia (que as pessoas estavam no lagamar admirando o crepúsculo), o astucioso acendeu a tal balsa. Aí, as pessoas, muitas delas já apreensivas e angustiadas por causa da história que era de domínio de todos, reconheceram o tão profetizado sinal: o incêndio no mar.
            Foi um desespero só! Gritavam, choravam, chamavam os filhos para ficarem juntos até o momento da morte.         É preciso lembrar que as pessoas eram simples e respiravam numa atmosfera de temor religioso? Isso bastou para tornar a armação bem verídica!
            A sorte foi que alguém percebeu a canoa do Zé Bráz nas proximidades do mar em fogo e matou a charada. Logo tudo voltou ao normal. E assim uma brincadeira tão distante de nós passa um pouco do ser caiçara: engenhoso, religioso, irreverente, contemplativo e astucioso.

sábado, 26 de março de 2011

Pau cheiroso


                  Em certa ocasião,  na praia  da  Enseada, vindo de uma pescaria com o meu pai, vivi uma oportunidade única:  escutar o velho Henrique, o Fabiano e o Bráulio contarem causos de canoas.
                O velho Henrique, na ocasião, trabalhava na guarita da entrada da praia para impedir que os carros ficassem passeando pela areia, no lagamar; Bráulio Rocha era caseiro de um ricaço, no Canto da Bá; Fabiano fazia canoas. O comum a todos: eram caiçaras, adoravam conversar e sempre estavam combinando pescarias.
                 Meu pai, grande amigo deles, também tinha tais características. Foi ele que começou falando de canoa; disse que ficou impressionado por uma delas na praia do Puruba, cujo nome era Sacrifício, devido o trabalho que deu para trazer de onde foi cortada a timbuíba até chegar no rio da Escorregosa, no sertão do Cambucá, para depois navegar  por toda a baixada do Puruba até o rancho, na boca do rio. Quem quiser conferir tá lá: é a canoa preta repleta de redes. Ao lado dela, no mesmo rancho, tem duas azuis. O finado tio Durval dizia: “São as minhas queridas”.
                Em seguida, o Bráulio, da família Rocha (de muitos contadores de causos), explicou o nome da sua embarcação. Tinha o nome de Meu bem querer por escolha de sua companheira, representando o amor que os unia.
                 O Dito Henrique, já bastante idoso, devia ter inúmeros causos de canoa, mas contou de uma lá da praia da Fortaleza. Tratava-se de uma canoa rombuda, curta e grossa, de capurubu, com um mínimo de acabamento, “feito só no machado” conforme expressão usada nesses casos. Porém, era uma canoa própria para cargas. O nome dela: Cu grande, cujo dono a era o tio Genésio, filho do nhonhô Armiro, “um homem de coração tamanho do mundo”. Por isso que, sempre que alguém tinha uma boa carga, logo dizia: “Vou na Cu grande do Genésio; só ali cabe uma montoeira de coisas”. E ele emprestava prontamente a canoa que mais podia ser chamada de Feiosa, conforme conclui o velho Henrique.
                 Finalmente, o Fabiano, pai do nosso amigo José Carlos Góis, que terminava uma canoa feita de canela-bosta, lá no Morro do Funhanhado, disse:
                - Depois de ouvir vocês me inspirei para dar nome à minha canoa. No mês que vem, por ocasião da pegadeira de peixe-porco, ela romperá a arrebentação das ondas com o nome de Pau cheiroso.
                Todos riram e concordaram que era o nome mais apropriado nesse caso.

                Sugestão de leitura: O chalaça, de José Roberto Torero
                                                                                Boa leitura!
                                                                               José Ronaldo dos Santos

sexta-feira, 25 de março de 2011

Uma caapora é parte de mim

Devo a inspiração deste ao amigo Jorge Ivam, de um presente dele. Trata-se de uma poesia de Demóstenes Cristino que serve para rememorar, nas minhas raízes, o meu lado tupinambá.

                   
   
       




                        Eu tenho um bugre dentro de mim, tenho...
                        Sinto-o nesta paixão antiga por caçadas,
                        No prazer infantil de andar no mato,
                        Na profunda afeição pelas coisas agrestes.

            É muito gratificante aprender com o senso comum, com as ciências, com a filosofia... Mais prazeroso é aprender com as artes, com a poesia que diz aquilo que sentimos, mas que ainda não aprendemos a dizer.
            As palavras inspiradas, na referida poesia, são como oráculos rememorando a pureza dos primórdios étnicos, os compromissos decorrentes disso, as percepções do espírito caiçara.

                        Eu tenho um bugre dentro de mim,
                        Diluído no meu sangue, tenho...
                        Sinto que ele me arrasta
                        Para a fragrância balsâmica das matas,
                        Para a música das cachoeiras,
                        Para as noites leitosas de luar,
                        Para a majestade serena dos grandes rios,
                        Para o marulhar cantante dos regatos,
                        Para o verde dos mares,
                        Para o azul dos céus,
                       Para o silêncio repousante dos lagos adormecidos...

            O meu avô Estevan, da Caçandoca, filho de Francisco Félix (vitimado pela gripe espanhola no início do século XX), dizia que seu bisavô casou-se com uma caapora, ou seja, uma índia aprisionada nas matas da Serra da Ponta Aguda.
            Caapora era o bugre. É o nosso lado indígena que nos revelou o boitatá nas noites maravilhosas de nossas praias como se alertasse para a pesca predatória. É a nossa porção indígena que nos convida a ver a Mãe-do-ouro deslocando-se sobre a mata, servindo como baliza ambiental (para respeitar esta mata como um todo interdependente em todas as vidas e fenômenos que compõem a Serra do Mar). Já a Iara, a mãe-d’água, regia os lagos e os rios, inclusive as alterações de percursos. A sua justiça resultava em fartura de camarões, sururus, piabas, cágados, muçuns... Dava satisfação ver balaios, covos e cercos abarrotados. Encher puçás na arrebentação das ondas. É de se imaginar?!
           É, ainda, a herança caapora da cultura caiçara que recomenda: a cada noite deve se sonhar sonhos bons para dar novos passos no dia seguinte.
            Encerro este com a lembrança de uma fala do Silvio (Nenê) Fonseca: “Eu acho que nasci em tempo errado. O que eu gosto são as lembranças de outros tempos, diferentes das de hoje”.