domingo, 17 de abril de 2022

O SOLDADO SITIADO

   
Saco da Ribeira por volta de 1973 - Arquivo Postal



        A estrada é a mesma que, de vez em quando, deixa-se ser entupida por um barranco que desaba com as chuvas fortes; as pessoas passam...Há muitos anos que o Sítio do Promontório está ameaçado, desde o tempo em que ali habitava o Seo Antônio Julião. A  primeira casa veio abaixo faz muito tempo; as outras descerão o barranco também. Dali era linda a vista do mar, da baía da Enseada, da praia da Santa Rita, da Ilha Anchieta ao longe...Andando um pouco mais, chegando no morro da Pedra do Alçapão, era a casa da Dona Terezinha, onde pedíamos cana para ir chupando durante a caminhada e ela era toda alegria em nos ver, pois o vizinho mais perto era o pessoal do Seo Hermínio, na Brava, a praia seguinte (hoje chamada de Lamberto). 

    Foi o Seo Antônio Julião quem me contou da Grande Guerra, quando o Seo Gusto foi um dos convocados a aguardar na Ilhabela, "ficar de prontidão" para ir para a Itália caso fosse preciso. "O Gusto era nascido na praia da Santa Rita e foi convocado e levado apesar dos choros da mãe e de tanta gente. Ele, medroso, alguém que nunca deixara o pacato lugar que nem rua tinha, se viu nessa enrascada. Se não fosse, iria preso. Passou tudo, dispensaram os pracinhas, o Gusto voltou. Só que aquele tempo vivido entre militares mexeu com ele: nunca mais foi o mesmo. Deu de juntar os colegas na praia e ensinar ordem unida, de explicar técnicas de sobrevivência etc. Era engraçado porque os rapazes participavam das fantasias, dos deveres cívicos do Gusto, como uma diversão. Riam a poder da nova condição do coitado. A mãe dele se lamentava porque a vida de soldado com medo de ir à guerra deixara o filho ruim das ideias. O tempo passou, a personalidade nova do Gusto foi encarada como normal. Ele não conseguia trabalhar como antes, tinha um semblante de angústia permanente. Sentava na praia, olhava o vai e vem dos pescadores, mas agora tinha medo do mar. Em tempo de trovoada, o coitado sofria como cachorro, só faltava se enfiar debaixo da cama. Passou a viver  - a sobreviver! -  como pedinte. Punha um saco nas costas e não tinha vergonha de esmolar na cidade". 

     Mais coisas eu escutei dessa gente antiga, desse povo que prestava atenção no tempo, nas cantorias dos passarinhos, nas correções das formigas e nas galinhas que ciscavam os cisqueiros. Seo Gusto morreu na miséria, sempre pedindo para comer o necessário de cada dia. Mais tarde, quando eu soube de outros pracinhas e/ou familiares que, mesmo sendo apenas convocados e tendo vivido a espera, aquartelados igualmente, recebiam um salário na condição de ex-militar, deduzi que o pobre caiçara da Santa Rita sofrera, além do trauma que o invalidou parcialmente, uma injustiça. Quem sabe um pagamento mensal teria evitado as tantas humilhações àquele  homem. Quem sabe? Seo Gusto foi um soldado caiçara sitiado pelo resto da vida devido ao trauma imposto na juventude. Sua luz se apagou há anos naquela casinha escondida no meio do bananal, perto do caminho por onde tantas vezes passei na minha adolescência.

       Depois de tantos anos, ao pé do "Morro do Promontório", me ponho a escrever essas lembranças enquanto espero, dentro de um ônibus, a liberação da pista que veio abaixo depois da chuva forte da noite. Por mais de quarenta minutos o trânsito ficou parado. Assim que foi liberado o acesso, olhei para o alto e pensei: "Mais casas cairão".

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