sexta-feira, 22 de abril de 2022

MOLÉSTIAS MENTAIS

O saudoso Zé Carlos agora virou escola - Arquivo JRS

 
       Nasceu José Carlos Pereira, filho do conhecido Pitágoras, mas o apelido era Zé Frangão. Morreu cedo esse meu amigo, ainda no início da carreira de professor;  hoje nomeia escola infantil no município de Ubatuba, no coração da cidade.

      Certa vez, na escola Aurelina, na Estufa II, conversávamos a respeito de moléstias mentais a partir da nossa vivência como caiçaras. Também, mediante os avanços imobiliários sobre o território caiçara, refletíamos sobre posicionamentos ideológicos que incluíam mais gente e outros que aumentavam as desigualdades sociais, que excluía grande parte da população. "Quem não fica louco com coisa assim, com essas ruindades em nossa terra?", repetia o Zé.  Me recordo que o texto de abertura daquele nosso encontro era antigo, escrito pelo Esteves da Silva, doutor de outros tempos. Hoje, ao me deparar com o mesmo assunto, vendo o tanto de caiçaras embalados pelo fanatismo a ponto de apoiarem um governo declaradamente contra a Constituição Cidadã, a favor dos milicianos, da violência (e vota num governo da extrema direita que persegue a educação e a cultura, acaba com os direitos trabalhistas, zomba de quem está a favor dos meio ambiente e das minorias sociais, favorece delinquentes etc.), dá vontade de enfrentar tamanha ignorância perguntando: "Por que você apoia essa posição ideológica, mas pretende gozar dos direitos conquistados pelo pessoal que está no lado oposto?".  Mas vamos ao texto do Velho Doutor Esteves, na grafia do final do século XIX:

        Os ubatubenses descendem de portugueses, do indígena e do africano: mestiços onde predomina o elemento caucáseo ou o autochtone, herdaram a robustez orgânica, o amor à família, e a crença religiosa do vigoroso lavrador lusitano, a sagacidade e a resignação do índio brazileiro. 

        Nas suas condições ethnicas deparamos com qualidades tão apreciáveis, nas manifestações moraes com tantas provas de affeição pura e cordial, nas emergências da vida vimos fulgurar-lhes uma certa sensatez, um discernimento recto, uma tenacidade tamanha que, não obstante a simplicidade, quase poderíamos dizer bíblica, que transparece como elemento natural do espírito de grande parte da população do campo, tudo denota um povo viril, apto a um futuro de progresso, digno da sociedade paulista, honroso fator da comunhão brazileira.

           A ingenuidade original de suas aspirações limitadas a um presente precário symbolisa a consequência forçada de circumstancias mesológicas anteriores, onde a tradição de um remoto espirito de resistência de nossa população do campo a toda novidade que destruísse hábitos atávicos, se imiscuía com a proverbial indolência do proletário desalentado, títere da poderosa vontade dos plutocratas do interior, pervertido pela criminosa adulteração do senso moral introduzida nas classes submissas pelos dominadores dos antigos latifúndios, verdadeiro feudalismo de tempos que já se foram, graças ao influxo bemfazejo e rehabilitador de uma ideia nobilíssima, a emancipação do elemento servil.

     [...] Hospitaleiro, intelligente, religiosos sem fanatismo, amante da família, ordeiro, não exhibindo bandidos ou assassinos, não contando nos annaes da justiça delictos nefando, deixando, porem, durante annos paginas em branco nos fastos do crime e as cadeias vasias de condemnados - eis a moral, eis a mentalidade d'este povo.

       Aqui não se pôde formar longo arrolamento de casos de alienação mental. Ligeiras perturbações mentaes consecutivas aos excessos alcoolicos entre poucos, rarissimos casos de delirium tremens nos trabalhadores empregados na fabricação de aguardente, pelo abuso de suas libações, resumem as moléstias mentaes tão extensamente attribuidas ao alcool por Magnan e Morel.

     Pois é, meu amigo, essa onda atual de fanatismo, de tantos ignorantes combatendo os conhecimentos científicos, negando a capacidade de análise social, faz pensar em moléstias mentais grassando muito além dos teores alcoólicos de outros tempos. Você nos deixou faz tempo,  Zé Carlos, mas faço questão de compartilhar a nossa posição em comum: é a Educação que pode mudar o mundo. Portanto, na escola deveria se conversar sobre tudo. Ela é o segundo berço da cidadania.


 

Um comentário:

  1. Realmente, na escola deveria se conversar sobre tudo, mas, infelizmente, aqueles que lucram com o obscurantismo se opõem a essa liberdade, e as vítima da própria ignorância acham que eles estão certos.

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