domingo, 23 de agosto de 2020

CURIANGO DE SAUDADE

Lua minguante (Arquivo JRS)


                Na madrugada passada, além de escutar alguns galos cantando pelos arredores, no concerto habitual, também identifiquei um curiango, passarinho da noite. Julguei estar próximo, talvez no pé de carambola ou de uvaia. Fazia tempo que eu não escutava a fala dessa ave. Tempos atrás tinha uma coruja que era habitual visitante, mas sumiu, deixou de cantar por aqui.

                Houve tempo (morando em outras casas, em outros lugares, quando não havia iluminação pública), em que ouvir os sons da noite era uma ocupação regular para mim, pois sempre madruguei. Talvez uma herança da primeira infância, quando eu me levantava assim que percebia a movimentação na cozinha, com meu pai preparando o café e a marmita para enfrentar o dia no trabalho. Agora, com ruas iluminadas, cheias de barulhos (carros, motos, discussões...), faltando árvores etc., os sons dos pássaros noturnos são raros, os sapos e grilos também se manifestam apenas esporadicamente.

                No tempo em que morávamos no morro da Fortaleza, na Badeja do tio Custódio, os sons da noite nos seguravam em casa. Tal como os nossos antigos tupinambás, eram raros os barulhos da escuridão que não nos causavam sobressaltos. “Que foi isso, mamãe?”. "É curiabô falando na grota. Fiquem quietos". A gente se encolhia todo de medo. Havia uma coruja que parecia imitar uma criança nova chorando. Escutar o urutau era sinal de mau agouro. Mamãe também era medrosa. A cada canto do urutau, ela repetia: “Urutau, teu pai morreu. Que me importa! Urutau, tua mãe morreu. Que me importa!”.

                Ao me levantar para escrever algo, me fixei em algumas lombadas dos nossos livros ajeitados pelas prateleiras. Notei que cada um dos livros traz uma boa lembrança (de pessoas, de momentos...). De repente, não achei nenhum deles que passasse sem ser notado. Pode ser por isso que é tão difícil se desapegar deles. Desconfio que tenho muitos amigos que também passam por isto: é verdade que há mais lembranças do que livros em nossas estantes, pelas prateleiras de nossas casas. Que bom que você leu até aqui! Engraçado, né? Nem sei como eu parti dos sons da noite e cheguei nas vozes dos nossos livros.

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