terça-feira, 31 de março de 2020

UM PÉ DE QUINA

Hotel Picaré nos idos de 1950 (Arquivo Clayton)


     









Sementes de araribá (Arquivo JRS)
          “Hoje é um bairro, conhecido como Sertão da Quina; para nós sempre foi Morro da Quina. E tem também o Sertão do Ingá, o Sertão do Meio e o Sertão do Araribá”, afirmou um dia o saudoso Tio Izídio, da Caçandoca, gente dos Antunes de Sá, os herdeiros da fazenda Caçandoca que começava na Pedra do Cruzeiro (ou Pedra do X), não muito longe do Hotel Picaré, e terminava na Pedra do Frade, lugares que todos precisam conhecer um dia. Esse saudoso tio foi casado com a Tia Luzia, irmã da Vovó Martinha. Portanto, minha tia-avó, meus tios-avós. Vovó Martinha e Vovô Estevan eram os pais do meu pai (Leovigildo Félix dos Santos). Ela era da praia do Pulso e ele da Caçandoca, do ramo dos Félix que preferiu a praia. Os outros foram para o Rio Escuro e para o Morro da Quina.

            “Mas por que tem esse nome de Morro da Quina, titio?”.   Eu sempre tive essa facilidade para especular, de querer saber a respeito de tudo. “Essa é fácil, meu filho! É porque naquele morro, bem onde depois foi construída a capela, tinha uma grande árvore, um enorme pé de quina, onde, desde os tempos mais antigos, as pessoas iam buscar folhas e raspas para a cura da doença chamada maleita. Depois, quando eu era criança ainda, apareceu um outra doença, a pior de todas que eu conheci até hoje: era a gripe espanhola. Aqui, no nosso lugar, muitos morreram. A Anna, mãe do Estevan, vosso avô, foi uma das primeiras. O pai dele, o Francisco Félix também não demorou muito. Os dois cemitérios (da Maranduba e da Floresta da Raposa) ficaram cheios, precisaram abrir mais espaço em volta. Desse tempo é a morte também do velho pé de quina, porque era todo mundo acorrendo até aquele morro para tirar folhas, raspar tronco e galhos, ter alguma coisa para fazer o chá. A coitada da árvore não aguentou a demanda. Acabou a doença... morreu muita gente... e morreu o pé de quina! Tempo depois, com o aparecimento da santa, no lugar do pé de quina foi construída a capela em honra a Nossa Senhora das Graças. Ali, no morro da quina”.

              Mais tarde, o escritor Pedro Nava escreveu a respeito dessa peste do começo do século XX, na Primeira Guerra Mundial:

          “Era apavorante a rapidez com que ela ia da invasão ao apogeu, em poucas horas, levando a vítima às sufocações, às diarréias, às dores lancinantes, ao letargo, ao coma, à uremia, à síncope e à morte em algumas horas ou poucos dias. Aterravam a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas. Nenhuma de nossas calamidades chegara aos pés da moléstia reinante: o terrível não era o número de casualidades mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes, a impossibilidade de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva…”.

                 Me lembrei dessa prosa com o titio, ainda na minha criancice, porque tenho ouvido falar muito de um medicamento por nome de cloroquina, testado por um médico francês como eficiente no tratamento das vítimas do coronavírus, a peste do momento. Tomara mesmo! E estabeleci uma ligação: cloroquina... quina...Morro da Quina! É isso! O princípio da quina, a sabedoria dos nossos antepassados! Haja pé de quina!

            Tio Izídio disse ainda: “Era chá de quina,  banha de lagarto derretida no café, canja de galinha e um preparado de cachaça e limão. É que era remédio contra a terrível peste”.

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