quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

VERDADEIRAS MENTIRAS

 

Dormindo ou morto? - Arquivo JRS 

   Vivemos, na atualidade, um dilema: ter de desconfiar até mesmo de vídeos com pessoas compenetradas, parecendo tratar de temas sérios, fazendo denúncias etc. É que, graças ao avanço da tecnologia, se tornou muito fácil distorcer paisagens, fabricar imagens, colocar falas e cores... Enfim, passar uma mentira como verdade. Imagine esse poder atuando sobre as mentes mais ingênuas, sobretudo naquelas em que até sinistros líderes religiosos conseguem provocar reações das mais descabidas e inimagináveis. Imaginou? Dias desses chamei a esposa para ver uma criança brincando com um animal. Achei bonito. Ela, fixando na tela, disse: "É inteligência artificial, alguém teve a ideia e foi criada. Não é verdadeira". Pois é, simples assim. Logo teremos mais eleições. Me pego pensando no estrago que farão essas mentiras criadas com recursos tecnológicos avançados. O que se esperar de mentes já dominadas pelos algoritmos, recebendo mensagens mentirosas? É assim: se alguém curte uma mensagem mentirosa, interage com ela, mais mensagens de mesmo teor chegarão a ela. Torna-se um poço sem fundo; serviço completo de alienação humana. É a lógica dos algoritmos. Entende agora o porquê dos grupos políticos mais reacionários se posicionarem contra a regulação das mídias? As mentiras se tornaram suas plataformas, seus programas de propaganda política, suas garantias de vitória nas eleições. O theinterceptbrasil divulgou que deputados da extrema direita estão querendo incluir o homeschooling no Plano Nacional de Educação, o PNE. O motivo é simples: eles querem inserir conteúdos ultraconservadores no currículo escolar, como vídeos do Brasil Paralelo, que distorcem a história e atacam consensos científicos. Consegue ver o tamanho dos problemas decorrentes dessas mentiras, as consequências delas? Você acredita que alguém vai deixar de acreditar no que viu e ouviu na tela digital para dar atenção à sua argumentação? Pior para o pobre que se torna pessoa conservadora. Mas conservadora do quê? Da sua própria pobreza, da sua ignorância, da sua submissão aos ricos e às ideias dominadoras! 


terça-feira, 2 de dezembro de 2025

A VERDADEIRA ECOLOGIA

 

Mandioca - Arquivo JRS 

   Jorge Galdino, grande companheiro que já nos deixou, nativo do bairro de Itaquera, na capital paulista, sempre foi sensível às causas humanitárias, muito se importou com os sofrimentos alheios fazendo vistas grossas aos seus. Por isso se lançou no mundo, militou na causa operária, brigou nos movimentos populares, fermentou boas sementes para a sociedade. Tornou-se padre. Andou por outras terras onde se sentia mais desafiado a lutar contra as injustiças. Sonhava em ir para a região norte do Brasil, morar nas terras dos Yanomami (porque, na década de 1980, era denunciado ao mundo o massacre contra esses indígenas, pais da cultura da mandioca e de tantas outras). Jorge era grande leitor, vivia por dentro das notícias, tinha um admirável senso crítico. Costumeiramente eu o procurava para me atualizar e ouvir suas considerações a respeito de diversos temas. Como dava satisfação prosear com ele!

   Era comum eu e Jorge estarmos juntos, participando de palestras, reuniões, debates em torno das questões sociais. Numa certa ocasião, quando a questão indígena o atormentava, ele me mostrou um texto do bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga. Lemos e discutimos juntos com outras pessoas. O tempo passou, Jorge faleceu em missão humanitária fora do pais. Dias atrás eu reencontrei o dito texto e faço questão de apresentar agora aos leitores do blog:


   Ainda um apelo urgente: Os Yanomami estão morrendo. Em Roraima, de fato, está ocorrendo o mais eficaz genocídio da história brasileira, a extinção cultural e física de 9.900 Yanomami brasileiros, pela invasão de 50.000 garimpeiros e com a omissão cúmplice de todas as autoridades responsáveis, sem que sirva para nada nem a Constituição - nova e não aplicada - nem o clamor universal. A verdadeira ecologia amazônica é, primeiro, a população amazonense: os humanos que habitam esse habitat, a vida humana preservada em meio à preservada natureza. 


   Eis a face religiosa que eu admiro. Não continua atualíssimo a denúncia do finado bispo? Ele e o saudoso Jorge não estavam certos em lutar contra as injustiças sociais tão defendidas pelas pessoas  afinadas com ideologias de direita? 




sexta-feira, 28 de novembro de 2025

VELHOS COBIÇOSOS

 

Carobinha em flor - Arquivo JRS 

   Zé Roberto roda muito, leva um bom tempo para chegar ao seu local de trabalho. Vai pedalando uns quinze quilômetros, deixa a bicicleta guardada no quintal do Teteco porque diz que ali está bem guardada, sem perigo de ser roubada. Lamenta por viver assim, desconfiado de tudo, mas não pode dar sorte ao azar, pois a bicicleta é o meio de transporte dele e de mais gente que, estando de carro, sobretudo na temporada e feriados, querendo chegar logo em casa, acaba ficando parado no trânsito, sobretudo na Praia Grande. Disto se conclui que a bicicleta se torna uma solução possível.

   Paulo e Justino, ambos servidores públicos recém aposentados, moram no centro da cidade. Já não têm filhos pequenos e estão com suas vidas estabilizadas, sem preocupações essenciais, ganham o suficiente para viverem bem. Foi a respeito deles que Zé Roberto me contou o seguinte novidade:

   "Para mim, que sou relativamente jovem, é custoso ir todo dia a essa distância por causa do trabalho, mas não tem outro jeito. Agora me diga se há necessidade de dois homens já não tão jovens, aposentados, irem nessa mesma lonjura só por causa de dinheiro?". Pedi, então, que me explicasse melhor. Eu ainda não estava entendendo a que se referia o indignado amigo. "É o seguinte" - continuou ele - "Paulo e Justino resolveram abrir um bar lá no bairro, perto de onde eu deixo a bicicleta protegida. Sabe onde era a fábrica de blocos dos sócios Wilson e Nilo? Pois é, ali eles montaram um bar. Agora precisam viajar todos os dias se querem se estabelecer, ganhar freguesia, né? Será que eles precisam tanto disso ou é apenas cobiça? Quero ver se eles aguentam quando chegar a temporada, quando perderem horas nas idas e vindas. Não poderiam ficar em casa, curtindo suas famílias e netos que estão chegando sempre? E, além do mais, nem sei se ali é um bom ponto para montar um bar. São poucos moradores, famílias tradicionais, quase no pé do morro."

   Eu escutei e considerei os argumentos do Zé. Achei que ele estava com razão. Eu não faria esse sacrifício se não houvesse tanta necessidade. Me parece que a parceria dos dois aposentados se sustenta apenas na cobiça, na ânsia de ganhar mais dinheiro sem levar em consideração outros aspectos do resto de vida que têm pela frente. Eu, caso tivesse o tempo livre deles, sem querer ficar em casa atormentado a mulher, pegaria a linhada e iria pescar na costeira. Ou ficaria ali, na boca da barra, jogando baralho e conversa fora com a companheirada. Deixa pra lá, a vida é deles! Posso chamá-los de velhos cobiçosos?


quarta-feira, 26 de novembro de 2025

VELHOS COMUNISTAS

 

Caiçarada, a festa - Arquivo JRS 

     Em Ubatuba, na estrada do Morro da Berta, longe de cidade, moravam os dois mecânicos, velhos comunistas segundo dizia meu finado pai. Seo Pedro, outro do time de igual ideal, tinha casa e família numerosa no coração da cidade. Viviam na espreita, ariscos, porque era tempo difícil, de ditadura militar. Essas ideias de ter tudo por igual, repartido segundo as necessidades, são antigas! Se acreditarmos no que é dito nos Atos dos Apóstolos e em cartas de Paulo dirigidas aos primeiros seguidores das ideias e do exemplo de vida de Cristo, acharemos textos que comprovam a busca deste ideal: repartir os bens desta Terra, ser uma comunidade solidária, inclusiva etc. Se é verdade o que escreveram a respeito de Jesus, temos no grupo que o cercava os fundamentos explícitos de um autêntico e desafiador comunismo. No século XIX, na Inglaterra, vendo as agruras da classe operária, Karl Marx e seu parceiro Engels, inspirados nas comunidades primitivas, teorizaram uma sociedade diferente da capitalista. Em 1917, o império russo viveu inicialmente a sua revolução nos moldes dos princípios dos dois teóricos. Ao longo da história muita gente acreditou e segue firme nos mesmos princípios. Eu costumo dizer que as nossas comunidades de pobres caiçaras sobreviveram graças aos princípios comunitários, onde a pesca coletiva acontecia semanalmente, se ajudavam nos roçados e farinhadas, repartiam suas caçadas, festejavam na unidade etc. Houve experiência histórica de um Estado realmente comunista? Não! O que buscam implantar em diversos pontos do planeta é um Estado socialista. Socialismo é quando o poder estatal interfere fartamente nos rumos da sociedade visando uma vivência mais justa; seria uma etapa anterior ao comunismo, o grande desafio, a utopia do autogoverno de cada um dentro de uma comunidade que se auto governa também. Por um mundo assim, Cristo, outros líderes carismáticos e muitos que se identificaram com igual projeto foram imolados. Por isso se diz que ser cristão de verdade é ser revolucionário. Mas voltando à nossa história primeira, dos velhos mecânicos comunistas do Morro da Berta: eu me admirava de ver, como que abandonado no terreiro deles, um velho modelo de caminhão. Pensava que ali apodreceria sem prestar para nada. Foram anos vendo o estado de abandono, até que um dia, como se tivesse acontecido um milagre, lá estava o caminhão brilhante, parecendo novíssimo. Dava até para enganar que havia saído da fábrica naquele momento aquilo que, no meu entender, já era ferro velho. Inacreditável o que pessoas capacitadas e com firmes propósitos conseguem fazer! 

terça-feira, 25 de novembro de 2025

A CRIANÇA QUE DORMIA

 

Caminho das margaridas - Arquivo JRS 

  Era da metade do dia para o fim da tarde, quando eu me dirigia a uma festa de fim de ano. Na rua encontrei a Elen empurrando o carrinho da criança. Era comum ela, adolescente, sair para distrair a bebê todas as tardes enquanto os pais da criança trabalhavam. Também para ela era bom, fazia-lhe bem, se alegrava com as novidades pelos caminhos, pelos sorrisos das pessoas e por algumas cenas engraçadas.  Dia quente, imaginei a sede debaixo daquele sol. Certamente que ao menos uma mamadeira com água deveria estar sendo levada, pois no bairro não há chafariz como antigamente costumava ter em alguns lugares. Senão... só restaria parar em alguma casa ou ponto comercial e pedir por favor um copo d'água. Fui divagando em coisas assim até o local da festa, onde colegas me esperavam para celebrar mais um ano de trabalho no qual nos angustiamos juntos, pois as alegrias foram poucas. Cumprimentei a quem fui vendo mais perto. Manoel me levou à cozinha onde uma montanha de bifes já estavam prontos para serem devorados. Naquela hora, não sei porque, pensei em todas as pessoas que vagam com um mínimo de coisas no estômago devido às injustiças deste mundo, por não terem seus direitos reconhecidos porque os patrões desejam lucros e mais lucros, exploram sem compaixão. Pensei no tanto de gente que é destratada pela cor da pele, pela condição sexual e/ou física que lhe coube, pelo lugar que habita etc.   Fim da festa para mim; deixei o espaço bem antes de anoitecer. Poucas pessoas estavam pelas ruas. Voltando para casa também seguia Elen empurrando o carrinho. A criança chorava, devia ter se enfastiada dos trancos ou estar com fome. Senti tristeza. Naquele horários os pais ainda não teriam chegado de seus trabalhos. Elen daria banho na pequena, alimentaria, poria para dormir. Depois se retiraria para seu quarto, nos fundos. Naquela idade já era empregada doméstica. Nem conseguiu se matricular no ensino médio porque precisava ajudar nas despesas da sua família. Era aluna brilhante até o ponto em que conseguiu estudar. Os que sabem menos obedecem melhor é a máxima no Estado opressor. A criança cuidada por ela haveria de ter outro futuro. Continuei andando, indo para a minha casa. Amanhã será um novo dia, logo será outro ano.


sábado, 22 de novembro de 2025

SABE O QUE É?

 

Arte em casa - Arquivo JRS 

Sabe o que é morar num território controlado por bandidos, mas saber que os maiores deles não vivem ali, mas sim em mansões, com aviões particulares, dinheiro a rodo e contas em paraísos fiscais?

Sabe o que é entender de política ser a arte de fazer o bem para a cidade e não só para alguns?

Sabe o que é estar em constante temor, querendo os melhores caminhos aos seus filhos, mas sendo intimidado em seu próprio portão?

Sabe o que é acompanhar toda a trama política reacionária que busca proteger esses grandes bandidos?

Sabe o que que é ver os pobres massacrados em nome de uma falsa justiça?

Sabe o que é enxergar que o domínio das tecnologias está mantendo a opressão dos que trabalham?

Sabe o que é não querer que os filhos dos pobres evoluam e se libertem da opressão?

Sabe o que é sentir algo medonho dessa imensa massa manobrada por alguns, mas dizendo ser a vontade de Deus?

Sabe o que é ver essa disparidade entre as classes sociais?

Sabe o que é se angustiar vendo os pobres sendo usados para aceitarem o sistema de morte?

Sabe o que é ver vagando pelas estradas uma força jovem na desilusão?

Sabe o que é viver sem um teto, sem carinho e sendo perseguido por não ter nada?

Sabe o que é viver da compaixão alheia ou aguentar as injúrias a cada dia?

Sabe o que é vislumbrar o final da aventura humana na Terra?


segunda-feira, 17 de novembro de 2025

LIÇÕES MÍTICAS

   

Milhos - Arquivo JRS 

   Há muito tempo, cedo pela manhã, dois índios Siox, armados de arco e flecha, caçavam nas planícies norte-americanas. No alto de um morro, olhando em volta à procura de caça viram alguma coisa a distância que se aproximava deles de uma forma estranha e maravilhosa. Quando a misteriosa coisa chegou mais perto, notaram que era uma mulher muito bela, vestida de couro branco de gamo, carregando uma trouxa nas costas. Um dos homens sentiu imediatamente desejo sexual pela mulher. Disse ao amigo. O outro, porém, repreendeu-o, advertindo-o que aquela mulher não era, com certeza, uma mulher comum. Ela chegou bem perto nesse momento, e pondo no chão a trouxa, convidou o primeiro homem a aproximar-se. Quando isso aconteceu, os dois foram envolvidos subitamente por uma nuvem, e quando a nuvem subiu, havia somente a mulher e, o homem, nada mais restava do que os ossos a seus pés, que eram devorados por horríveis serpentes. "Olhe bem para o que está vendo!", disse ela ao outro. "Agora, volte para seu povo e diga-lhe para preparar uma grande cabana cerimonial para minha chegada. Eu quero anunciar ao povo algo de grande importância".


Todo homem apegado aos sentidos e às coisas deste mundo vive na ignorância e está sendo consumido pelas serpentes, que representam suas próprias paixões - assim explicou Alce Negro - Sacerdote Oglala Sioux (EUA - 1948)


(Do livro: O Voo do pássaro encantado - Joseph Campbell)