sexta-feira, 29 de março de 2024

TERRA PARA QUÊ?

Mutirão caiçara no Ubatumirim - Arquivo Olympio


   Eu  olhei o morro ao redor, onde outrora o meu povo cultivava sua subsistência, garantia a minha existência e a nossa cultura. Agora estava completamente ocupada por propriedades de gente rica, com quase nenhuma árvore e muitas porções de terra recoberta com cimento. A cachoeira que bastava ao povo do lugar desapareceu. Poços foram cavados nas profundidades enquanto a empresa que lucra com água não se interessa no investimento. São em momentos desses que eu mais penso na preservação ambiental. Os meus antigos, em seus roçados, não causavam tais danos à natureza porque seguiam os hábitos indígenas de cultivo em pousio. A pureza das águas era algo sagrado, delas todos bebiam. Qualquer veio d'água tinha seus peixinhos, seus camarões e demais seres que ali se sustentavam. Aos animais peçonhentos, quando a morte era inevitável, havia um lugar reservado. Ali, onde era o Buraco da Cobra, toda a comunidade sabia que deveriam ser largados os bichos mortos, sem perigo para ninguém. Os peixes e frutos do mar eram básicos na sobrevivência. Suas cascas e seus restos serviam para realimentar a terra, sustentar  as raízes e frutas tão essenciais à vida, se juntavam no monturo às folhas secas e galhos e eram revolvidos pelas galinhas, pela criação. Vidros eram guardados à parte, tinham suas serventias diversas. Plásticos não era comum. A posse da terra era para servir à vida do povo que ali habitava. Agora, lendo um documento antigo, do século XVII, lavrado pelo Juiz Ordinário Diogo Couqueiro, me deparo com a fundação da Vila Nova da Exaltação da Santa Cruz do Salvador de Ubatuba, cabendo ao Capitão Jordão Homem da Costa "fazer a Vila e Igreja, gastando com sua fazenda por provisão que tem da Senhora Condessa dona Mariana de Sousa Guerra [Condessa de Vimeiro], proprietária das ditas terras e Senhora... por sua Majestade e assim por esta escritura assim eu e o mais herdeiros assinados como contentes que a possa dar de sesmaria a quem lhe parecer que a possa aprovar e aproveitar e pagar dela os dízimos a Deus e os redízimos ao dito Capitão para enviar à Senhora Condessa e assim o havemos por bem e tiramos todo o nosso dito domínio e poder careçam se temos algum direito nas ditas terras para que o dito Capitão as possa dar aos ditos povoadores que é assim serviço de Deus e de Sua Majestade e da dita Condessa, sendo por testemunhas...". E segue poucos nomes, os tais primeiros povoadores. Nada se diz referente aos povos originários, à etnia Tupinambá, a nossa importante raiz cultural, uma das bases da cultura caiçara. Mais tarde, no advento do turismo, aconteceu algo semelhante: não houve esforço para aprender com as pessoas que habitavam o espaço litorâneo, que aqui viviam há séculos. O resultado está aí: uma massificação cultural e uma destruição do meio ambiente. Foi claro o desrespeito cultural! 

   Tenhamos a convicção que é a cultura, formada pelo tempo de vida humana sobre este pedaço de chão chamado de Ubatuba, que permite um elo muito forte da comunidade com todos os demais seres (plantas, animais, rios, mar etc.). Digamos que isto é espiritualidade de fato. O resto é tramoia de poucos para viverem às custas da maioria, para destruir a natureza. É evidente que a dívida pelo roubo praticado pelos invasores europeus e por especuladores dos tempos recentes ainda permanece, tem seus desdobramentos cruéis. O futuro está ameaçado.

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