segunda-feira, 24 de abril de 2023

CANOA EMBORCADA (II)

 

O rabequeiro - Arte: Estevan

         Santiago Bernardo,  nesta parte denominada a última canoa, me fez recordar do rabequeiro, da importância dele na comunidade descrita num dos capítulos. Então me lembrei de um desenho do meu filho Estevan. "Cai certinho na recordação!" . Aguarde o que vem por aí sob o título de Canoa Emborcada. Parabéns, Santi!   

 

            Sentado na praia o pescador ficou absorto em dois mares: o que se descortinava a sua frente, velho conhecido de tantas remadas e o de pensamentos que revoluteavam debaixo do chapéu como águas no vento de agosto. Um vento começou a entortar a tarde, os homens cobriram as canoas com lonas amarradas e as redes no rancho, viram ele ali sentado navegando em outros mundos e o deixaram quieto. Ele fechou os olhos e ficou ali inerte e imerso em si mesmo, quase despregado do tempo que a tudo permeia. Como se as pessoas nem o vissem ali ou ele fosse uma estátua de areia que alguma criança fez no dia e que logo o vento e a chuva desmancharia. E não seria assim também com todos? Pequenas estátuas de areia sopradas na beira de um mar do tempo? Enquanto as canoas permaneciam um pouco mais.

    Ele se viu remando outra vez, com o vento golpeando forte no rosto, fincava o remo com força nas águas como se pudesse furar o mar denso e escuro. Parecia noite, mas às vezes o dia no mar vira noite e perde-se a noção do tempo e das direções. A chuva escorria pelo rosto junto com a água borrifada pelo mar e no meio da escuridão não se divisava nenhum rumo, mas ele remava mesmo assim, pois era tudo o que se tinha a fazer. No meio das rajadas de vento e de golpes de água na cara um som se fazia ouvir e se perdia e voltava em fragmentos, o ranger de uma rabeca distante. Em algum lugar o rabequeiro Antonio devia estar fazendo seu trabalho de pelejar com a tempestade, em seu mundo indecifrável.  Uma onda levantou a canoa e na arrancada ela deslizou descendo muito rápida até que num solavanco ela bruscamente parou e o pescador foi arremessado para longe, mas quando caiu não foi na água nem em pedra, sentiu o chão macio de areia, a canoa tinha chegado em algum lugar, uma praia. Ele levantou-se e num gesto intuitivo puxou a canoa para cima até a vegetação rasteira. Depois olhou em volta tentando reconhecer. A ilha dos Sumidos! Outra vez dera com ela sem querer. Vagando sem rumo. A canoa de cedro parecia querer sempre voltar para a ilha, caminho decorado em meio a escuridão e mau tempo. Ele se abrigou debaixo de uma árvore para esperar o tempo amainar, então lembrou-se do farol no alto da ilha, levantou-se e penetrou na mata procurando a trilha da subida, o vento fustigava as folhas das plantas e derrubava galhos secos no caminho, mas conforme ele subia sentiu o vento diminuindo até parar e um silêncio dominar tudo. Quando atravessou a mata espessa, quase no final do caminho a vegetação era de arbustos e ele pode ver então um céu noturno limpo e forrado de estrelas. Por cima das nuvens, por cima do mundo o céu era outro.

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