sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

SUNUNGA MANSA


Sununga - Arquivo Nerci


     Dia de trabalho; colegas me convidaram para uma contação de história. Onde? Na praia da Sununga!

     A prosa naquele ambiente encantador tinha um objetivo específico: que no ano letivo que se inicia o grupo docente e a equipe gestora não deixem de aproveitar essa natureza e esses recursos culturais para o efetivo exercício da aprendizagem, do sucesso escolar. E a Gruta que Chora, creio eu,  é o recurso cultural mais próximo de nós. Por isso, o grupo docente se dispôs a fazer uma caminhada até a Sununga para sentir a energia naquela praia, para escutar a Lenda da Serpente. Foi emocionante!

    Sununga, desde os povos originários, era local de mar bravo, onde o barulho e as características das ondas sempre assustaram. É a razão do nome. O professor William deu um testemunho que comprovou isso: “Eu não conhecia esta praia apesar de ser caiçara. No tempo da escola primária, quando houve uma excursão com a finalidade de vir até a Sununga, a minha mãe não deixou porque tinha medo do mar bravo”.  É isso mesmo! Minha mãe e tantas outras se comportavam desse modo. Sununga ainda é lugar que mete medo. De vez em quando alguém desaparece nas forças que dão as características do lugar, da praia inigualável do território caiçara. Só que, dias atrás, a Sununga estava mansa, sem nenhum barulho, sem nenhuma onda lambendo os costões e arrebentando no lagamar. Era Sununga sem justificativa. Assim contei da lenda da Gruta que Chora.

   Quantas viagens nós fizemos escutando nossos pais, nossos avós? Minha mãe, minha avó, no tempo da minha infância, quando morávamos na praia da Fortaleza (de onde se avista a Sununga), contavam muitas histórias. Uma delas era a da Toca da Serpente, da Gruta que Chora. É uma lenda, tem um ou mais sentido por trás das narrativas seculares. Mas o que é lenda?

   Lenda deriva da palavra legenda. O livro Legenda Áurea, de Jacopo de Varazze, é do século XII; reúne as histórias a serem lidas nos mosteiros católicos durante as refeições. Tinham o objetivo de edificar as almas dos ouvintes. Legenda...lenda...histórias a serem lidas...tradições a serem contadas...sentidos a serem recuperados para apoiarem a nossa existência atual. E eu sou categórico: muitos dos nossos primeiros encantamentos literários provém de lendas.

   No meu caso, na minha tradição católica, nossos pais contavam a lenda da Gruta que Chora para reforçar a ação do padre que livrou a comunidade daquele bicho horrendo-apavorador do local. Mas bem cedo, graças à educação escolar, eu aprendi que essa história vem de um tempo mais antigo, dos primeiros habitantes desta terra batizada como Ubatuba. Ou seja: são histórias, tradições antigas que se vestem com novas roupagens. Primeiramente eu contarei a versão que se aproxima daquela contada pela minha saudosa mãe e avó da praia da Fortaleza. É a mesma que eu escutei mais tarde contada pelo Seo Filhinho (Washington de Oliveira, irmão da professora Semíramis Prado de Oliveira que nomeia a escola estadual do bairro, do Saco da Ribeira). Trata-se da moça, da Marcelina, moradora daqui de perto, que numa noite se angustiava suplicando para que alguém não se fosse, ficasse mais um pouco no seu quarto etc. Ouvindo-a, a mãe abriu a porta. Marcelina estava só, chorando. Foi quando ela revelou: “Sabe daquele bicho que o Seo Antero viu na Gruta que Chora, metade cobra metade dragão, do mesmo tipo que foi derrotado por São Jorge? Ele tem aparecido nas madrugadas neste quarto, mas se transforma num moço lindo, me abraça e fica comigo umas horas. Só vai embora depois que o galo canta pela terceira vez. Eu me apaixonei por ele. Estou desesperada porque ele foi embora, voltou para a toca”.  Sorte da família - e da comunidade! - foi ter aparecido por ali um monge. Ele dizia que o padre Anchieta, em tempo passado, havia profetizado que “a Ordem dos Jesuítas expulsaria o monstro que habitava aquela gruta, nas paragens de Ubatuba”. Assim, depois de umas oração forte e de um emocionante sinal-da-cruz, todos escutaram um barulho semelhante a um estrondo de trovão, com a água do mar invadindo a toca e um caminho se abrindo mar afora, por onde aquela criatura horrível se foi. Portanto, graças à força desse religioso e a fé dos caiçaras, todos se viram livres da maldição. A minha mãe concluía assim: “Aquele bicho era praga de mãe”.

  Agora contarei a versão indígena que eu escutei na adolescência:

  No tempo que só o povo primitivo ocupava este território de Ubatuba, ninguém podia se aproximar desta praia (Sununga) porque o mar ficava bravo, enxotava qualquer um por mais valente que fosse. Só moça nova chegava e não acontecia nada. Parecia até que alguma coisa chamava essas donzelas para a toca que está no canto da praia. Uma criatura enorme as abocanhava e sumia na toca. Era como uma cobra gigante, gosmenta como uma lesma. De uma bocada só ela engolia a moça. Depois sumia no buraco, fazendo por um longo tempo uns barulhos medonhos. Ela saía nas noites de lua cheia, se rolava nas areias e provocava ondas de lamber o jundu. Os parentes ficavam desconsolados pelas perdas. Muitas moças desapareceram naquele lugar. Dentro da toca, bem no fundo, tem um buraco que desce muito. Hoje está soterrado, mas nunca ninguém teve coragem de chegar perto dele, onde o bicho se escondia. Eis a razão do choro da gruta.

   Quando criança, ao fazer mais perguntas, querendo saber mais coisa, a mamãe dizia: “Tem mais coisa sim, mas é história de gente grande, tá bom?”. A vovó assim concluía: “Desde antes, no tempo dos índios, esse bicho estava lá. Sorte nossa que o nosso bom Deus enviou um padre para benzer aquela toca e expulsar o bicho. Nunca mais nenhuma moça foi tocada nesse lugar”.

  Legenda...lenda...história a ser contada, lida, que pode nos edificar, inclusive a partir das lições e reflexões escolares. Que assim seja!

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