domingo, 26 de fevereiro de 2023

É UM CALMANTE


Pinos diversos - Arquivo JRS


     Gilberto trabalha na limpeza pública, sai bem cedo de casa. Eu o encontro por volta das 5 horas, quando o dia está amanhecendo. Lembro-me dele quando ainda era adolescente. Morava na praia do Tenório, com a avó. Era ela quem ia nas reuniões marcadas pela escola. Agora habita no pé-da-serra, onde está a maioria da classe trabalhadora, bem longe da praia. (Isto é um aspecto do racismo ambiental). O comum é o Giba, a cada manhã, descer pedalando e fumando. O cheiro denuncia: é maconha. E lá vai ele recolher o lixo que todos nós produzimos!

     Anteontem, no mesmo caminho, encontrei o Filipe. Estava totalmente desnorteado, contando uma história triste, mostrando uns machucados, querendo desabafar. Eu escutei por um bom tempo. Na despedida ele me perguntou se eu não tinha isqueiro. Era para acender um cigarro de maconha: "Isto o meu calmante. Serve para esquecer um pouco das coisas ruins”.

     Na limpeza da minha calçada, o “Bosque da Rua”, encontrei, dentre outros corpos estranhos, pinos de cocaína. Parece ser um lugar apropriado à noite para alguém que precisa usar tal produto. Os usuários provavelmente se detêm na madrugada, quando não está chovendo. Não me importo, mas deveriam levar os frascos desocupados, não jogar entre as plantas.

     Geralmente a maioria dos usuários de drogas ilícitas são jovens. Inúmeras situações de vida os conduzem às saídas que aparecem. Uns bebem, outros fumam, alguns cheiram... Mas todos mostram uma realidade: as alternativas de trabalho, de lazer e de realização são restritas, planejadas para manter as injustiças, as desigualdades sociais que garantem os privilégios de uma minoria. Quanto mais desnorteados estiverem os jovens e a classe trabalhadora, mais fácil se perpetua a dominação dos pobres. Assim, qualquer iniciativa cultural que seja uma alternativa ao uso de qualquer tipo de droga é bem-vinda.

     Enfim, encerrando este texto, relato um fato ocorrido ontem: Gilberto agora está no turno da noite, volta do trabalho ao amanhecer. Eu o encontrei voltando com um parceiro. Na bicicleta chamava a atenção uma carga enorme de latinhas de alumínio. Eles pararam para arrumar alguma coisa. Giba me explicou: “Bom dia, Zé. Estamos chegando agora depois de uma noite de correria. Depois a gente vende as latinhas e divide o dinheiro”. Só restou me despedir deles desejando um bom descanso: “É isso aí, moçada!”.


2 comentários:

  1. A escola pública era apresentada como um meio de os jovens da classe trabalhadora ascenderem socialmente. Poucos conseguiam isso, mas havia essa possibilidade, havia um discurso que o estimulava, agora os currículos oficiais nem disfarçam mais o objetivo de manter as injustiças sociais. Para isso, com o pretexto de que os jovens pobres precisam se empregar mais cedo, a escola alija os alunos dos conhecimentos básicos e empurra-os para o mercado de trabalho, no qual, por falta de formação, terão de se conformar em exercer funções desprestigiadas e, portanto, mal-remuneradas. O resultado é que a desigualdade social só aumenta. Outra consequência dessa educação é o indivíduo que a recebeu não ter a mínima noção de que é vítima de um sistema que o faz acreditar que vive em situação precária porque não tem mérito ou não é tão inteligente quanto aqueles da classe dominante.

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    1. Infelizmente é isso mesmo! Esses jovens foram meus alunos anos atrás.

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