sexta-feira, 17 de março de 2023

CANOA EMBORCADA

 

Olhando o mar - Arte: Estevan

    Canoa Emborcada é o novo livro de Santiago Bernardes. Está pronto? Não! Está chegando! Aqui segue umas linhas inspiradas no mar, na mata, nas vivências e nas lutas das Comunidades Tradicionais do nosso chão caiçara, do nosso litoral norte de São Paulo. Parabéns, irmão!

 

  

Remo esculpido - Autor: Mestre Bigode


     O pescador colocou o balaio no ombro, olhou uma última vez para a canoa Corre Mundo e caminhou para casa como sempre fazia, mas levava algo além dos poucos peixes no ombro, parecia um peso maior além do peso do balaio, mas um peso por dentro, fatigando o ser, angustiando e anuviando o pensar. Não sabia definir essa sensação estranha, como se tivesse um bolo de farinha seca enroscado da garganta. Chegou em casa, colocou o balaio no chão, preparou a bancada de limpar peixe, do lado de fora e puxou de um gole de água da garrafa para ver se desembolava a garganta e num segundo foi como se sentisse gosto de água salgada, como se bebesse da água do mar, igual a um dia na infância quando pulou da canoa do pai voltando para a praia achando que já dava pé e afundou engolindo um bocado de mar. Mas não desesperou, na terra onde se aprende a nadar antes de se aprender a andar criança é peixe, tantas vezes já mergulhara naquelas águas, mas teve uma sensação diferente dessa vez, como se o tempo embaixo d’água fosse outro, mais lento, ou até mesmo ausente, debaixo d’água tudo era mais claro, mais bonito, mais azul, mais vivo, abriu os olhos e viu o casco da canoa por baixo, os remos movendo-se como em câmera lenta,  o fundo de areia, peixes passando e olhando-o curiosamente, com o gole de mar na barriga sentiu-se pequeno dentro do mar e o mar imenso dentro dele. Deu um giro e subiu à tona, agarrando-se à borda da canoa. Os pescadores riam. Aquele gosto de mar engolido sem querer voltou no instante do gole d’água da garrafa pouco antes de limpar os peixes.  Um segundo na vida pode ser uma eternidade, ainda mais se for no mar, onde os naufrágios rondam os homens que remam como as tintureiras que espreitam o tombo da canoa para comer tudo que veem pela frente, pescadores há que perderam mão, braço, perna na boca do monstro e que foram inteiros devorados.

  Contam-se histórias do antigo presídio de uma ilha onde uma ponta da costeira se aproximava da ponta do continente formando um boqueirão de uns quinhentos metros, ali antigamente o espia ficava a avistar os cardumes. Quando expulsaram os nativos da ilha para construírem o presídio passaram a cevar as tintureiras com restos de carnes para que criassem o hábito de rondar sempre por ali e assim se algum preso se aventurasse a tentar fugir a nado para a costa viraria comida de tubarão. Mas um dia estourou uma rebelião e um soldado se jogou naquelas águas para pedir ajuda em terra, conseguiu atravessar ileso e virou lenda.


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