quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

CANTA MAIS, TIA MARIA


Elias e seu cavaquinho (Arquivo JRS)

          Um novo ano pode significar muitas coisas. Também pode não dizer nada, ser somente vida que segue. Tem gente que se lança a novos propósitos, mas desconfio que muitos não pretendem se desacomodar. Para me inspirar, assisti  com  a minha Gal o filme Os dois papas. Ótimo! Recomendo-o aos pretendentes a novos desafios. Antes disso, fui visitar a mana Ana e o primo Elias que anda com a saúde fragilizada há tempos, mas que sempre tira uns ponteados no cavaquinho, me fazendo relembrar de muitos tempos atrás.

       Quando eu era bem criança, a nossa casa era no morro da Fortaleza. A casa do tio Dário, pai do Elias, era a mais próxima da nossa. Bastava atravessar uma grota cheia de bananeiras e superar apenas um pequeno capão de mato para alcançar o terreiro deles. Tia Maria Estefânia, a “Maria do Dário”, sempre nos acolhia muito bem, fazia um agrado, nos queria por perto. Além de conversar sozinha, de estar sempre em preces, ela gostava de cantar. E de vez em quando também ponteava a viola! É isso mesmo! Na verdade, naquela casa todos tocavam instrumentos de corda: o pai, a mãe e os três filhos: Elias, Toninho e Ditinho. Na sala espaçosa, eu silenciava para escutar seus instrumentos e as vozes do pai e da mãe.

     Numa delas, fazendo a introdução, o titio explicava: “É um chiba. Quem canta sempre é o Chiquinho Barbosa, que tem casa na “Rampa” [zona do mercado de peixes], perto do armazém do Zequita”.

        O Paulista naufragou,
        A Companhia perdeu (ai, ai, ai).
        Saiu da Barra de Santos,
        Foi pra Barra do Rio.
        Saiu não sei quantos tripulantes
        Pra dirigir o navio (ai, ai, ai).

Em seguida, animada na viola, a titia puxava um verso de São Gonçalo:

        Ó meu padre São Gonçalo
        Casamenteiro das velhas
        Por que não casais as moças?
        Ó que mal fizeram elas?

        Ó meu São Gonçalinho
        Ele é tão bonitinho
        Ele come o seu pão,
        Ele bebe o seu vinho.
        Ai meu santo São Gonçalo.

      Depois, todos silenciavam para escutar a história de São Gonçalo. A titia sabia muitas do gênero. Só bem mais tarde eu descobri que ela sabia ler, coisa rara para uma mulher pobre nascido no alvorecer do século XX. “Ela aprendeu com os irmãos”, segundo o Elias. “Os irmãos aprendiam com um professor e ensinavam a ela, em casa”.

Outro pedaço de uma cantiga da titia:

         Deixai-me contar estrelas, Ianhinha:
         Dois navios na vela vão.
         Naquele mais dianteiro, Ianhinha,
         Navega meu coração.

E o tio Dário, na rabeca, cantando sorrindo:

       Que rei sou eu
       Sem reinado, sem rainha,
       Sem castelo, sem coroa.
       Afinal, que rei sou eu?

          Ontem, antes de me despedir, ainda tive o prazer de escutar o Elias no cavaquinho:

       Canoa, minha canoa,
       De Marica Sivirina,
       Lá no mato estão tirando
       Um pranchão com quatro quinas.

      Remando minha canoa,
      Meu reminho de mamão,
      Enfrento qualquer refrega,
      Suspiros que as moças dão.

        E eu, agora crescido, me recordo do encantamento naquela casa de pau a pique, onde nem notava o tempo passar com esses meus parentes estimados, quando sempre pedia: “Canta mais, tia Maria”. Neste ano espero seguir o exemplo da titia, ou seja, além de contar mais, eu também pretendo cantar mais. Com carinho. Feliz ano novo, amigas e amigos!

2 comentários:

  1. Que este ano seja repleto de vitórias, realizações e muita saúde. Que seja pleno em felicidades e paz. Abraços, curta as férias e obrigado por compartilhar suas preciosas memórias.
    Feliz ano novo pra você e para toda a sua família.
    Napo

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