quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

CONTAR HISTÓRIAS É RESISTIR

                      
A vida caiçara não era complicada  (Arquivo Roberto Ferrero)

           Ainda bem que alguém fez este trabalho: registrar mais um pouco da nossa gente, da tradição oral! Mais gente tem de fazer isso! Cada vida caiçara é uma experiência inigualável! Nossos registros fazem parte da resistência! Parabéns, Roberto! É fascinante sim!


  •             Quando em maio de 2014 aceitei o pedido da Sra. Noêmia para ajudá-la a preservar as suas memórias, não poderia imaginar que eu estava embarcando numa história tão cheia de detalhes e nuances de uma Ubatuba esquecida. 
  •       Um caderno surrado encapado com plástico azul escondia um verdadeiro tesouro! Como eu gosto de imaginar aquela Barra Seca antiga, a travessia do rio Indaiá... ela me contou que até hoje, quando passa pela ponte de Perequê-Açu, costuma olhar uma determinada pedra, que é o "termômetro" que mede a altura da maré que ela enfrentaria mais a frente. Reflexos do tempo que em atravessar o Indaiá era uma aventura! 
  •        Fico imensamente feliz de ter conhecido essa mulher. Decerto que ela tem o poder de cativar a todos por onde passa. Não é a toa, que quando moça, enquanto ajudava o Seu Filhinho na datilografia de seus causos, o boticário homenageou-a com a Lenda dos Marinhos, da qual ela descende diretamente. A última frase da história foi composta especialmente e especificamente referindo-se a ela! Compartilho com vocês um trecho dessa história.

  •            "Imaginem que eu já vim ao mundo lutando para sobreviver. Meus pais, tios e avós sempre tiveram por mim uma preocupação exacerbada, porque não se esqueciam nunca de como havia sido o meu nascimento e a minha infância e não se cansavam de contar essa história, onde também a minha mãe figurava como uma grande heroína. 

  •             Eu seria a primeira filha do casal, a primeira neta dos meus avós paternos, a primeira sobrinha dos irmãos de meu pai e a expectativa em torno do meu nascimento era grande. A gravidez da minha mãe correu normalmente, mas na época não se tinha médicos na cidade, e portanto minha mãe nunca fez um único exame pré-natal. Os partos naquela época eram feitos por uma única parteira, a saudosa dona Filismina, que residia no Perequê-Açu. Meus pais e familiares residiam na Barra Seca, distante a mais de três quilômetros da cidade, separados pelo rio Indaiá e sobre o qual atravessavam numa pequena balsa – único meio de transporte naquelas bandas. 
  •          Na manhã do dia vinte e sete de julho de 1947, a minha mãe amanheceu sentindo as primeiras dores do parto. Aconselhada pela vovó Maria, não foi a roça naquele dia e ficou em casa andando de um lado para o outro, sem saber o que fazer. Não tinha experiência nenhuma (era o primeiro filho) e apenas ouvia os conselhos da vovó Maria, que tentava lhe passar coragem e orientava para que fizesse repouso.
  •           Ao entardecer, de volta a casa depois de um extenuante dia de trabalho na roça da família, o papai a encontrou aflita e dizendo não aguentar mais as dores. Reuniu-se a família e decidiram que alguém deveria ir até o Perequê-Açu buscar a dona Filismina. O tio Badeco ficou encarregado da missão e não tardou muito para que ele estivesse de volta trazendo a parteira e os seus apetrechos de trabalho. A partir daí, a noite foi de vigília para todos. No quarto, apenas a mamãe e a parteira tentando fazer o que seu trabalho; na grande sala, a luz das lamparinas, os demais se distraíam conversando e fazendo cada qual os seus afazeres. A vovó e a tia Baica terminavam as últimas camisinhas do neném, carinhosamente costuradas a mão. O vovô Sebastião Honório, o tio Badeco, tio Orlando e tio Neco se revezavam no trabalho de reformar o tresmalho que apresentava enormes buracos ao longo das malhas. O papai – este, coitado – não tinha cabeça para fazer nada e não saía da porta do quarto para saber o que estava acontecendo. 
  •          A manhã foi chegando de mansinho e do galinheiro vinha o alegre cantar do galo anunciando que um novo dia começava. Dentro de pouco tempo, a rústica mesa de madeira já estava arrumada, o café fumegando no bule e na grande cuia de cabaça também fumegavam os pedaços de mandioca doce e cará colhidos no dia anterior na roça da família. Após o café, os homens e as mulheres foram para a vida diária da roça – uns para carpir a mandioca, outros o canavial e o bananal, e apenas o papai e a vovó ficaram em casa para qualquer imprevisto. Mais um dia se passou e a mamãe continuava sob os cuidados da parteira, sem nenhuma definição. 
          Quando os últimos raios de sol se esconderam no poente, homens e mulheres, cansados, voltavam para casa para um merecido descanso. Banho tomado, roupas limpas sobre o corpo cansado, sentaram-se a mesa para o jantar, que prometia ser uma festa. Da cozinha vinha o cheiro delicioso de um Azul Marinho caprichosamente preparado pela vovó, com muito coentro, salsa, alfavaca, banana nanica bem gorda e verdinha; e sob o caldo azulado boiavam aqui e ali grossas postas de corvina. Sobre as brasas afastadas para um lado do grande fogão a lenha, ardiam outros tantos pedaços de corvina, cujo aroma se misturava com o primeiro e seria servido logo em seguida acompanhado de café de cana e farinha de mandioca. Apenas a mamãe não pôde servir-se daquele “manjar”, pois a parteira achou que ela devia comer alguma coisa mais leve e assim orientou a vovó para que fizesse uma canja de galinha. E naquela noite sobraria um lugar no poleiro do galinheiro, pois a vovó havia se encarregado de matar e preparar uma suculenta canja com uma bonita e gorda galinha carijó ainda na flor da idade. E o jantar daquela noite não foi diferente dos anteriores, a não ser por um lugar a mais na mesa, onde se sentou a dona Filismina, que não se cansava de elogiar a gostosa comida entre um e outro comentário que fazia sobre outros tantos jantares dos quais já havia participado em outras casas por aquelas bandas, cumprindo a mesma missão.
            A noite prometia ser longa, pois a mamãe continuava com as dores e por mais que a parteira se esforçasse, não conseguia fazer com que aquela tão esperada criança viesse ao mundo. Chegou a manhã do dia 29 com o alegre cantar do galo e sinfonia de pintassilgos e sabiás sobre as goiabeiras e laranjeiras do quintal. A dona Filismina, assomando a porta do quarto, deu-se por vencida e, chamando o papai de um lado disse que era preciso chamar um médico com urgência, pois não tinha nada mais que ela pudesse fazer. Num abrir e piscar de olhos, o papai já estava pronto e acompanhado do tio Badeco partiam para a cidade em busca do único médico que ali residia e dava atendimento na Santa Casa. Este não se fez de rogado: num tempo recorde já havia preparado os materiais de que necessitaria e se pôs a caminho ao lado do papai e do tio Badeco. Ao chegar na prainha do Matarazzo, não conseguiu disfarçar o susto e o medo ao perceber que faria a viagem de canoa – uma bonita canoa de guaporubu, feita pelas mãos habilidosas do João Balbina com a qual o tio Badeco e o papai haviam feito a travessia do Boqueirão entre a Barra Seca e a cidade e com a qual fariam a viagem de volta. Passada a primeira impressão, o amor pela profissão superou o medo e logo estavam os três singrando as águas azuis daquele mar que, naquela manhã, parecia mais um rio, tão calmas estavam as suas águas.
  •         A viagem correu tranquila e em menos de uma hora o médico já estava ao lado de minha mãe fazendo os primeiros exames. Não demorou muito para que ele reunisse a família e com a voz embargada pela emoção comunicou a todos que a situação era complicada e ele pouco podia fazer, pois o caso requeria uma cesariana, mas a falta de recursos, a distância, as condições da viagem e o estado da mamãe seria um risco muito grande para leva-la a cidade. Ele tentaria um fórceps e grande preocupação era salvar a vida de minha mãe, que já se encontrava sem forças. Para a minha vida ele não dava nenhuma garantia, pois eu já apresentava sinais de fraqueza, dado o grande tempo de espera. A notícia emudeceu a todos. As mulheres, sempre religiosas e devotas, passaram a invocar cada qual o seu santo de devoção. E o nosso Deus, maravilhoso que é, o único capaz de solucionar todo e qualquer problema, ouviu aquelas preces e operou o grande milagre. Não demorou muito para que se ouvisse na sala o tímido choro daquela criança que rompia a barreira do sofrimento e chegava ao mundo para fazer a alegria dos seus pais, tios e avós, que naquele momento juntavam aquele choro um sorriso alegre, banhado de lágrimas – misto de alívio e contentamento. E naquele dia, mais um lugar ficou vazio no poleiro, pois uma gorda galinha foi sacrificada e cozida com muitas batatas, acompanhada de um suculento feijão com farinha seca. Foi o almoço que marcou o primeiro dia do meu nascimento, que ocorreu exatamente as onze horas do dia vinte e nove de julho de 1947."

  •          Fascinante, não?

Nenhum comentário:

Postar um comentário