quarta-feira, 12 de junho de 2013

QUE LINDO !!!

Painel produzido por alunos da Escola Maria Alice (Marafunda)

O que está escrito por Deus ninguém rabisca


        No tempo ruim Seu Manuel não descia sua canoa pro mar. Restava-lhe olhar da janela da casa as condições de navegação. Uma vez que a maresia ou o mar grosso como chamava abocanhava todo o jundu da praia.
           O velho pescador dizia sempre:
         - Isso aí é o mar fazendo uma faxina. Ele está devolvendo tudo que não lhe pertence pra terra. Pode esperar que assim que amansar essa força de água, o Canto Bravo vai estar lotado de tudo que é coisa.
         Dito e feito. Quando o mar acalmou, Seu Manuel correu pra praia pra fazer um levantamento das condições de trabalho. Uma vez que seus suplementos caseiros já haviam se esgotado. Faltava tudo. Culpa da maresia.
      Já na praia avistou a criançada que revirava o acervo trazido pelo mar. Uma farra. Era boneca sem perna e sem cabeça. Carrinho de plástico desbotado, com rodinhas e sem rodinhas. Soldadinhos de plástico. Bola de capotão murcha. Mas para aquelas crianças que nada tinham era como achar uma canastra de pura fantasia infantil. Era só aguçar a imaginação que aqueles brinquedos ficavam perfeitos. Exoticamente perfeitos.
          - Dá até graça. - Dizia Seu Manuel.
        - Que coisa festosa, essas crianças, parecem até um cardume de panaguaiú na guanxuma!
      Assim era o dia na praia do Felix onde um desses meninos nasceu. Outro divertimento desse menino era se empapuçar de laranja mixirica e competir no campeonato de cuspida de caroço. Dependendo de onde voasse o caroço, era de lá que viria sua noiva. Não sei porque ele proclamava a quatro ventos que a sua seria do Itaguá. Sempre a sua semente da laranja era arremessada para lá.
Logo cedo a vida exigiu desse menino. Com quatorze anos fez sua primeira viagem redonda. Um estágio de um ano num barco de pesca traineira. Aprendeu a tirar de letra as tempestades de frio, de vento e de mar grande. Formou-se na universidade da coragem. Com direito a um amor em cada porto. Com o dever de ter calma necessária para resolver problemas. Ganhou inteligência e sensibilidade no tratamento com seu próximo.
       Seu Manuel dizia que é o mar que forma homens destemidos e de caráter. Religioso, tem Deus como seu mestre e o Palmeiras como paixão.
       A vida difícil na infância, a falta de bens materiais não o tirou do caminho do bem. Mas forjou a valorização de cada coisa conseguida com dificuldade.
       Hoje, mestre pescador, em seu meio século de vida, é amigo de verdade dos amigos, é irmão de verdade dos irmãos, trabalhador destemido, feliz, alegre, festeiro, companheiro, amante, conciliador e poeta.
       Do Felix para minha vida, esse menino trouxe a certeza que era eu a escolhida desde sempre. Afinal, sou do Itaguá.
        Como diria Seu Manuel:
        - O que está escrito por Deus, ninguém rabisca!

        Neste Dia dos Namorados, feliz aniversário, Amor!

FONTE: O GUARUÇÁ
Nota do Editor: Fátima Aparecida Carlos de Souza Barbosa dos Santos, ou simplesmente Fátima de Souza, é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local. É autora de Arrelá Ubatuba.

ESPORTE E CIDADANIA


                Quando eu era criança, além das remadas, braçadas e correria no lagamar, pouca coisa se falava na área de esportes em Ubatuba. Também nem televisão, revistas ou jornais tínhamos.

                No domingo que passou (09 de junho), novamente eu acompanhei a Associação Nunes de Karatê. O meu filho – Estevan – foi um dos atletas a viajar 250 quilômetros a fim de aperfeiçoar o seu desempenho. Foi o XX Torneio da Amizade de Karatê-do, em Arujá (SP).
                Ao todo foram dez atletas espalhados nas diversas categorias. E todos foram muito bem!  

                Raffaella Rezende (ouro e prata), Maria Rosa  Etzel (bronze), Terezinha Maria (ouro), Alexandre Domingos (ouro e prata), Leonardo Nunes (prata e bronze), Estevan José (ouro), Rômulo Marcondes (5º lugar), Ruan R. Etzel (ouro), José Adriano (6º lugar) e Weider Nunes (prata). Mais importante que as conquistas foi a oportunidade de convivência e de crescimento de todos, inclusive dos familiares dos competidores.


                Um dos objetivos deste texto é agradecer aos pais dos alunos da Associação e demais apoiadores: Rocha Sorvetes, Pelé (do Supermercado Paulista). Mercadinho e Padaria São Bento e Castellar Engenharia, cuja sede está em Curitiba – PR. Parabéns por acreditarem no potencial dos atletas, ajudando a abrilhantar um pouco mais a nossa cidade, fortalecendo a esperança de um mundo melhor!
                Ah! Que legal! E pensar que os mais velhos, ao nos verem brincando de luta na fofa areia da praia, diziam: "É bom pararem com isso! Ficar aloitando à toa pode deixar vocês bacatudos, rendidos!".

terça-feira, 11 de junho de 2013

A TITIA BENZEDEIRA

Parte do painel do CANTAMAR  (Arte: Júlio Mendes)

                Zé, coloque em seu BLOG :
          Disse Goethe: "NEM TODOS OS CAMINHOS SÃO PARA TODOS OS CAMINHANTES".
É verdade! E sendo assim, eu digo que O MEU CHÃO NÃO É DE TERRA, NÃO TEM TRILHO DE CAMINHO, NÃO TEM ESQUINA DE RUA E NEM RUA COM ESQUINA. O CAMINHO DE MEU CHÃO É O MEU PRESSENTIMENTO, SIGO O BRILHO DO SOL, VOLTO NO RASTRO DA LUA. 
                                                                    Julinho Mendes.
       
        A tia Terezinha há pouco nos deixou. Era a última tia benzedeira. Agora, na minha família não tem mais ninguém. As outras (tia Maria Mesquita, tia Aninha, tia Martinha, tia Apolônia...) já se foram faz um tempinho, “dentro do combinado”. Creio que era a única no bairro do Ipiranguinha. Não sei como vão se virar os muitos pobres que a procuravam com tanta esperança de serem aliviadas.
                No começo do ano acompanhei o caso do Beto, um pedreiro esforçado que havia contraído leishmaniose no Pé-da-Serra, num serviço de manutenção por ali. Semanalmente ele estava na casa da titia para uma sessão de benzimento. Tomava um café depois de mais de meia-hora de rezas e imposições de mãos; nunca saía sem levar uns matos para banhar a ferida feia que lhe roía o calcanhar. “É mosquito-palha que fez isso, primo. Mas a titia vai curar”. De nada adiantava eu recomendar que fosse ao Posto de Saúde procurar uma orientação do doutor Teófilo. “Para mim, bastam a fé e o poder que a titia tem”.
                Ontem, pedalando pela estrada com uma caixa de ferramentas na garupa, encontrei o Beto. Ainda estava com uniforme de trabalho, cheio de disposição de chegar em casa, tomar um banho, encher a pança e descansar para enfrentar a luta que continua a cada dia. Perguntei da ferida. “Já passou; só tem a cicatriz! Valeu muito o poder da titia! Se não fosse as suas rezas e tudo aquilo que ela me indicava eu teria perdido a perna. Agora, o que decidiu de vez foi a pimenta!”.

                Como assim? Pimenta? “É isso, primo. Por fim a titia me deu umas dez malaguetas e a seguinte ordem: ‘Faça em duas vezes esse punhado. Amasse bem em cima de uma pedra, acrescente um punhadinho de sal e coloque em cima da carne viva. O Nosso Senhor vai te curar. Só não esqueça de agradecer depois’. E foi mesmo! Agora não sinto nada! A fé da titia ajuntada aquele monte de mato e ao poder da malagueta matou o veneno do mosquito-palha, graças à Deus!”. 

sexta-feira, 7 de junho de 2013

ESTE MENINO VIVE DIZENDO HERESIA

Mestre Dito Fernandes também representa a religiosidade popular
                 Neste final de semana acontece a festa no Sertão do Puruba, na Comunidade Católica que tem Dito Fernandes, dona Mocinha, Pedro Brandão e tanta gente de raiz caiçara. Espero que muita gente possa desfrutar das atividades, especialmente da Congada que só ali tem. Por isso reaproveito um texto antigo (mas nem tanto!) para permitir reflexões acerca da cultura popular, da criatividade dos pobres no cultivo da esperança.

               O título  - Este menino vive dizendo heresia - vem de uma frase é do saudoso tio Maneco Mesquita, um caiçara que se preocupava muito com a imagem, com a sua aparência pessoal. Explico melhor: nunca se viu ele sair de casa sem estar devidamente vestido (roupas passadas, sapatos brilhantes, chapéu impecável, lenço no bolso etc.). Nesse caso, ele se referia ao meu primo Fernando, só que não me recordo mais do contexto, porque foi que ele afirmou isso.  Só a palavra heresia me interessava. O tio Clemente foi o meu socorro.
                Com a paciência que lhe era peculiar, o titio, um santista devoto, admirador fanático do Pelé, me explicou que heresia era uma palavra grega; queria significar escolha, preferência para discordar de alguma coisa. Então eu deduzi que o Fernandinho, vulgo “Chico Pomba”, era alguém questionador.
                Mais adiante, outro tio – o Tonico – deu a segunda versão: heresia era um pensamento religioso diferente da doutrina da igreja católica. Herético era aquele que merecia ser perseguido e punido porque não aceitava os dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana.
                O meu raciocínio neste assunto deu outros passos conforme eu cresci, fui lendo e estudando. As pesquisas históricas e a literatura me ajudaram muito. Foi quando eu passei a imaginar os meus antigos passando por apuros caso vivessem em outra época, próximo dos inquisidores e de seus tribunais que apreciavam a morte pela fogueira. O que seria das imprecações maravilhosas do Mané Bento? E as benzimentos da tia Aninha, da tia Maria, da dona Josefa, do Mané Mariano e de tantos outros? Como terminaria a tia Maria da Barra que ensinava o catecismo dizendo que Jesus tinha dois apóstolos por nome de Judas: o "Matadeus" e o "Carioca"? E o João Pimenta, o “incréu”, com o seu linguajar herético, que fim teria? Da religiosidade popular, então, nada seria permitido!
                Desconfio que muitos desses caiçaras se desesperariam em saber que uma tal de Joana D’Arc, depois de acusada de heresia, foi queimada viva em trinta de maio de 1431, na França. Nem sei se, devido ao isolamento no qual vivíamos, eles souberam que, em 1920, o papa Bento XV a declarou santa.
                Quantas heresias! 
                Ainda bem!

quarta-feira, 5 de junho de 2013

AO CANTAR DO GALO


galo
           Na madrugada, quando o escuro ainda toma conta do
 mundo caiçara, os galos cantam chamando a manhã, 
trazendo tantas recordações, inspirando tantas 
poesias,inclusive esta do mano Mingo.


Antigamente era o canto do galo
nas fímbrias da madrugada
que franqueava os caminhos
às pessoas de bem:
pescadores partindo para o mar,
lavradores nas trilhas das roças,
ou viajantes partindo
(talvez por nomadismo atávico),
pois aqui  não faltava peixe pra comer
nem água boa de beber.

terça-feira, 4 de junho de 2013

ZÉ DO CINEMA


       
                Ontem, na madrugada, faleceu o amigo Zé Aparecido, o “Zé do Cinema”.
                Natural de São Luiz do Paraitinga, o Zé era professor das séries iniciais, mas sempre teve um outro emprego para aumentar a renda. “Quem mandou ser professor?!”. O apelido se devia ao tempo em que trabalhou no antigo Cine Iperoig, na Praça da Matriz (Ubatuba), onde hoje se localiza o teatro. Lembro-me muito bem dele fazendo promoções, indo às escolas para anunciar o filme Carlota Joaquina, rainha do Brasil. A semana inteira a sala ficou lotada.
                Para homenagear o amigo Zé, reapresento o texto a respeito da árvore que nós plantamos na escola Idalina (Bairro Ipiranguinha). Como seria bom se os moradores deste bairro e os alunos se voltassem para a ideologia preservacionista (em todos os sentidos)!
Era assim...
Agora está assim...
     
Dando estes deliciosos frutos.


                     Cheguei agora da escola estadual do bairro (Idalina A. Graça). Aproveitei para recolher alguns frutos (cajá-manga) da frondosa árvore dali. Afinal, cair frutos era o previsível após o vento forte da madrugada. Outra pessoa fez o mesmo cálculo: encheu uma sacola e se foi.


                Pois bem, é sobre a história desse pé de cajá-manga, que há muitos anos vem dando alegria às pessoas, que eu escrevo agora. Tudo começou em setembro de 1999, quando eu e mais cinco professores decidimos promover um gesto concreto, que marcasse a entrada da primavera. Iríamos plantar algumas árvores no terreno da escola para abrandar o calor em épocas quentes, oferecer sombras e frutos, dar mais equilíbrio no ambiente etc. Afinal, quem não prefere um espaço arborizado para quebrar a frieza e/ou feiura das nossas construções? Assim fomos até o amigo Arisson, no Monte Valério, escolhemos algumas mudas e plantamos no referido local (do bairro do Ipiranguinha). Um pé de jambo ficou perto do portão, em seguida vieram as amendoeiras perto de um pé de uva japonesa que já estava bem crescido. Eu decidi, juntamente com a finada Cleuza e o José Aparecido,  que o nosso cajá-manga ficaria o mais protegido possível, perto da secretaria da escola. E ali foi plantado o ser que media 30 ou 40 centímetros. Era o dia 21 de setembro de 1999.


                Ao longo desses anos todos, sempre vejo que as pessoas, sobretudo os meninos, aproveitam bem, apreciam os frutos. Estão constantemente vasculhando por sua volta. Ela, a árvore,  cresceu muito.              Agora, calculo que a gigante, distante do velho tarumã alguns metros, esteja alcançando os seus 15 metros de altura. Também tem um diâmetro considerável. Está linda! Deixa muita gente contente! Só um telhado construído recentemente está sendo castigado pelo impacto das frutas que despencam a partir da metade do outono. Outra coisa ridícula são as marcas deixadas em seu tronco por “seres sem-noção”.


                Para encerrar: de acordo com quem produziu a muda, antigo funcionário da ONG WWF (Fundo Mundial para a Natureza), cuja sede era no Monte Valério, a semente primeira foi recolhido no terreiro da antiga  Fazenda Velha, dos Irmãos Chiéus, os fabricantes da nossa pinga Ubatubana, aquela que deixou muita saudade. Pesquisando um pouco mais, descobri que a origem desta espécie está na Oceania, bem longe daqui. Então, não poderíamos  chamar os navegantes portugueses de “ótimos polinizadores”?

                    É assim, meu amigo Zé! Ficam as lembranças dos bons momentos vividos em comum.

domingo, 2 de junho de 2013

NORTE E SUL

Porto do Paru - Enseada (Arquivo JRS)

                Eu, nascido no lado do Sul, nem fazia ideia do que era o lado do Norte. Só no final da década de 1960, quando os meus tios começaram a trabalhar na A.S.E.L., com o Frei Pio, foi que comecei a entender isso.
                O lado do Sul é todo mundo que nasceu desde a Toninhas até a Tabatinga; o lado do Norte é todo mundo que está depois do Perequê-açu. Hoje parece não haver nenhum sentido nessa divisão, mas antigamente...dependendo do que falasse ou fizesse, lá vinha o dizer: “Também pudera, né? É gente do Sul!”. Ou: “Pelo falar só pode ser do Norte!”
                O Sul, desde a década de 1950, estava conectado com o mundo. Ninguém mais falava “vós mecê”. O Norte permaneceu isolado até a segunda metade de 1970, quando a BR-101 alcançou Paraty. Porém, assim definiu bem o Olympio Mendonça:
                “A principal característica do povo caiçara desta região [Norte] talvez seja a sua grande adequação aos movimentos da natureza que o cerca e envolve. Enfrenta os problemas, ora com a calma de uma mata em repouso, ora com o furor de um mar bravio. Aparentemente  é tranquilo, equilibrado, e pacífico; pode, porém, assombrar pela sua força e tenacidade.

                “Aqui tem gente que quebra um homem ao meio com um        soco e não há mais quem endireita...Assim explicou um caiçara...Mas que jamais se utilizou dessa força para a parte belicosa”. 

                Via de regra, não blasfema contra as intempéries e se acomoda ao sol ou à chuva, à fartura ou à carência, à sorte ou ao infortúnio. Enfatizando, quando enfrenta os fenômenos naturais não força nenhum acontecimento, como bem atesta o verso de um calango colhido no Ubatumirim, em 1972:

                “Peixe de lagoa é sapo/ bagre de mangue é socó/ Tainha também é peixe/ mais não pega no anzó./ Quando não qué pegá,/ não aforce que é pió”.


                O caiçara é, antes de tudo, um equilíbrio, uma adequação ecológica, um prolongamento natural da natureza”.