sábado, 5 de outubro de 2024

DESLEMBRAR

 

Olhando o céu- Arte da querida Gal 

    Qualquer um de nós sabe que vai morrer e deixar serviço por fazer. Certa vez, lendo Baú de Badulaques, de Rubem Alves, comecei a me comprometer em se libertar de tantas coisas que fui guardando, fazendo peso na minha existência, tal como camadas de tintas que, ao longo dos anos, foi escondendo a beleza da madeira, apagando a sua essência que se manifestava em cheiros, cores, veias... Agora, deslembrar é tarefa da nossa cabeça. Coisa dificílima! 

   A cabeça (cérebro, intelecto, memória...) segue selecionando o que pode permanecer, que ainda tem valor existencial. Vai descartando o que merece desaparecer, limpar espaço. É uma varredura mesmo! Creio que é assim a nossa vida, imitando o trabalho do cérebro. É um esforço consciente e também inconsciente porque o corpo tem suas razões autônomas. Desse modo vai se destacando apenas aquilo que nos marcou profundamente, de verdade, que é necessário ainda ao corpo. Tudo aquilo que aconteceu por obrigação, sem amor, desaparecerá. Os empreendimentos realizados por cobiça, pensando em acumular riquezas, serão inúteis ao anoitecer da vida. É esta que, finalmente, resguardamos. Basta de esforço sem precisão! Um projeto de serviço agora, mais do que nunca, é pensando nos meus, na coletividade próxima e no melhor para a humanidade. Sei que muitas das minhas amizades também remam comigo nesta canoa. Agindo assim a consciência se beneficia.

     Agora, no entardecer, meu movimento é pequeno no mundo porque as energias já não são as mesmas. A utopia permanece espiando da linha do horizonte, longe apesar dos muitos passos que demos. A definitiva alegria há de vir: uma mata refeita, produzindo água e garantindo a sobrevivência, dando alimento a nós e aos demais seres; uma família feliz repassando o essencial a cada dia, evitando a pior doença (aquela que reproduz o oposto de amor). O saudoso enfermeiro da minha infância, João “Japão”, irmão da Dona Maria Balio "Baixinha", gente do Sertão do Puruba, que nos atendia na praia do Sapê, disse uma frase que me vem sempre à memória: “Desconfio dessa gente que não acredita mais em benzedura, mas também não aceita a vacinação”. Ela não continua atualizada nesta época de tantas mentiras, das tão faladas e acreditadas fake news, este campo onde o ódio, oposto do amor, se reproduz?

    Tantas coisas...Manhã fria, de chuva ensaiando em vir ao chão... Sigo escrevendo das coisas que ainda não me deslembrei. Quem vai me entender? Creio que a maioria das pessoas nesta possibilidade já está indo do meio-dia para a tarde.

 

 

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

GERAÇÃO E CULTURA

 

Tio João  e filha - Arquivo Marlene

Caiçarinhas - Arquivo Trindadeiros

Longe, um piado diferente.

Não, não era de cobra!

Piado fora de tempo, mas de passarinho.

“É aviso, minha gente. Coisa boa não há de ser”.

“Bobagem vossa. Não sabeis que é urutau?”.

“Ah, bom! Então vamos em frente”.

Tio João nos guiava,

Pés miúdos no morro da Fortaleza.

"Vamos chegar na Pedra da Igreja".

De qualquer roça a gente a via.

Pelos caminhos os cheiros:

Sassafrás, ciosa, tarumã...

Tempo que voa.

De volta, já em casa,

A ordem da mamãe:

“Agora banho, tirar esse cheiro de capim melado”.

E logo, economizando no sabonete,

Eu aparecia com cheiro de menino novo.

 

Quem teve essa vida de criança?

Quem viveu assim a infância?

 

terça-feira, 1 de outubro de 2024

ERA SÓ ALEGRIA

 

As crianças - Arte da querida Gal

Que nem passarinho a gente ia chegando.

A escola, casa primeira da tia Martinha, na Fortaleza.

Do morro olhava o único caminho.

Por ali vinha eu e a mana Ana,

De pernas orvalhadas até os joelhos.

Por ali brotava um, brotavam dois, brotavam várias crianças: 

Todas caiçarinhas felizes.

À espera da aula ninguém se atrasava.

Todos queriam brincar antes.

A professora já estava lá,

Saudosa da sua terra

Em terras do Vale do Paraíba.

Correndo a vista por todo espaço

Avistava meninas e meninos

Chegando que nem passarinhos.


Parei aqui. Então completa o mano Mingo:


Quando a escolinha

agrupada do primeiro grau

da praia da Fortaleza

era no sopé do morro,

no meio do bananal,

uma cobra caninana

foi se enrodilhar

entre os caibros do telhado

para aprender o beabá.

Mas acabou sendo expulsa,

tão logo foi notada,

porque não estava inscrita

no livro de chamada.