segunda-feira, 29 de maio de 2023

NINGUÉM ME CONTOU

 

    

Um toco da velha árvore - Arte: Estevan

         Um pescador vivia tranquilo, anos 70, 80...tinha seu rancho na praia, guardava sua canoa, suas redes. Aí veio a lei e a força fez com ele o que a força sempre faz, proibiu sua pesca, começo dos anos 90. Ele vendeu sua canoa,  seus petrechos. O filho perguntou porque não iam pescar mais. "A lei é como uma rede de pesca, pega os peixes pequenos, mas os grandes pulam ou rasgam a rede. Os peixes pequenos somos nós".

        Ele ficou construindo casas, grandes casas em condomínios, de turistas, trocou o remo pela enxada e cimento. Construiu muitas casas, mas nunca conseguiu construir a sua. Morava de caseiro, um dia o dono vendeu a casa com ele dentro, saiu sem indenização  ou compensação alguma. Conseguiu outra casinha, um quarto, para seguir de caseiro. Passaram mais uns anos, ele está velho, mais de oitenta anos. E veio o dono e pediu a casa também. Não tem para onde ir aqui, só tem uma mísera aposentadoria. Essa é a história que sempre acontece e está acontecendo agora!

      Escutei do meu amigo o relato acima. E o encerramento é com esta revelação: “Esse homem é meu pai”. Ou seja, a via sacra de tantos caiçaras continua. A cruz está mais pesada desde o advento do turismo, quando as terras da beira mar foram cobiçadas para empreendimentos imobiliários. Dela enxotaram os ranchos das canoas, as moradias que respeitavam os jundus,  os pequenos roçados cultivados em rotatividade conforme a herança tupinambá, os caminhos de servidão, as áreas destinadas aos passarinhos e pequenos animais (gambás, lagartos, ouriços, cotias, preás etc.), os mangues com sua infinitude de seres e de vegetação tão caras à nossa alimentação e à feitura de casa no pau a pique... Quem de nós nunca se alimentou de manacarus, goiabas, araçás, pitangas e mais frutas das restingas? Quem nunca se encantou com orquídeas, palmas e tantas outras flores que só se encontravam nesses espaços? Quem nunca recorreu à erva baleeira, ao saião, ao assa-peixe e outras plantas curativas que nos valiam nas enfermidades? Quem nunca ouviu histórias de assombração beirando esses lugares sombreados de outros tempos? Quem não reconhece, a partir do que o meu amigo contou, a assombração máxima a infernizar o nosso espaço, a cultura caiçara, os últimos roceiros e pescadores?

      Assombração existe sim! Ninguém me contou. Pelas grimpas dos morros, correndo riscos, se virando como pode está o povo empobrecido e tantos caiçaras. Esse idoso que foi extorquido de tudo no decorrer dos anos agora está sem casa. Uma mísera aposentadoria lhe garante apenas a sobrevivência. É... o peixe miúdo vai desaparecendo. Vai se confirmando a profecia do Velho Zacarias da Ponta (da Fortaleza): “Haverá um tempo em que não haverá mais peixes, obrigando os tubarões a se devorarem uns aos outros”. Triste realidade.

     Na Antiguidade escreveu o filósofo Platão: “Boas pessoas não precisam de leis para obrigá-las a agir responsavelmente, enquanto as pessoas ruins encontrarão um modo de contornar a as leis”. Eu acrescento: criarão as leis que lhes convém. Prova disto é o Marco Temporal contra os povos indígenas, a flexibilização da leis trabalhistas desfavorável à dignidade das pessoas trabalhadoras, as mansões nos antigos roçados da nossa terra, os empobrecidos catando migalhas para sustentar a vida etc. Enfim...  Quem teria um abrigo a esse peixe pequeno que envelheceu nessa labuta de sustentar a riqueza dos outros?

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