sexta-feira, 15 de novembro de 2019

A CHAVE

Em Brumadinho, antes da tragédia (arquivo JRS)


        Quando eu era criança, conforme disse em outras ocasiões, o espaço caiçara era bem diferente do de hoje. Eram poucas as cercas entre as posses; os terreiros estavam acessíveis a todos, bem varridos, floridos e sombreados; os caminhos eram abertos a todos e os espaços eram públicos. Os bens eram repartidos entre nós. A modernidade hoje, se apossando de discursos de ódio, maquinando mentiras a partir de particularidades históricas localizadas, nega e combate os valores comunitários. O que importa é a cobiça, as conquistas individuais, o vencer a todo custo. “Ah! Nossos antigos estão superados, eram atrasados, não pensavam no futuro! Se fosse hoje, eles cairiam nessa moda de comunismo!”. 

          Pois é! Eles cairiam sim! Na verdade, os nossos antigos, no sentido etimológico do termo, eram comunistas, pois tudo era repartido por todos. Papai e mamãe, dentro da rotina comunitária, após uma caçada ou uma pescaria farta, despachava os filhos com quinhões a serem distribuídos nos arredores. É o chamado comunismo primitivo. Jesus Cristo, se acreditarmos nas narrações evangélicas, recomendou ao jovem rico, que almejava o paraíso, a repartir com os pobres os seus bens. Em outra passagem, na primeira comunidade cristã é conhecido o episódio do casal (Ananias e Safira) que acumulava, deixando de repartir como era praxe, e, no final, morreram para a comunidade. Tudo isso está para comunismo ou capitalismo? Mas tem um monte de gente, inclusive “cristãos”, parentes meus "crentes da Palavra Sagrada e da fila semanal da hóstia", condenados às exigências expoliativas, defensores de princípios individualistas que cultivam o ideal parasita. Ou seja, o trabalho é uma maldição; por isso “tenho de ficar rico, não trabalhar mais e só viver de rendas”. São cristãos assim que, empunhando uma Bíblia, dão golpes políticos, apoiam quem persegue as minorias em nome de uma elite, de uns poucos privilegiados neste mundo.

         A chave principal para repensar nosso mundo é a palavra. Ela cria e destrói modelos, alinha e desalinha utopias, revela heróis e heroínas passando pelo martírio, mas nem sempre se tornando santos e santas etc. Mas isso não me importa! O que me interessa é a memória, as lutas dessas pessoas em favor da vida em sua maior amplidão possível. Já li isto acerca do Cristo que tantos defendem: “Eu vim para que todos tenham vida”. Todos! Todos não significa somente alguns! Quer mensagem mais comunista?

          A palavra mantém a memória. Os comandos contraditórios que vivem parasitando a nossa gente têm a função principal de apagar a memória do valor comunitário. Dentre outros modelos, relembro da Árvore do Esquecimento e de seu ritual antes dos embarques dos negros destinados a serem escravos em outras terras distantes do mundo africano, numa relação parasítica. Agora, em tempo de reflexão da nossa identidade brasileira, recomendo um documentário de anos atrás: A rota dos orixás. E concluo: a chave da palavra deve atuar na fechadura da vida, romper a relação parasítica tão atualizada e remasterizada pelos recursos de última geração. A palavra deve gerar vida em vez de destilar ódio!

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