quinta-feira, 20 de julho de 2017

JARACUÇU AMARELO

Titio e o cará moela em formato de asa (Arquivo JRS)

               Tio Neco é muito querido por nós. Desde pequeno o que muito me impressionou nele foi um pé esquisito, faltando um dedo. “Foi picada de cobra, menino!”. Agora, depois de tantos anos, ele próprio explica:


               Em 1956, quando eu tinha oito anos, fui picado pela cobra. Foi assim: eu fui à roça com o papai [meu avô Estevan], como era costume. Lá chegando, armei a gaiola no lugar que mais tarde o Lúcio [outro tio] morou. Logo estava cheia de tiés. Na volta, pelo caminho da vargem, papai trazia nos ombros um cacho de bananas; eu seguia na frente, distraído, depenando passarinho. Não muito longe de casa, ao atravessar o Rio Ingá, pela baobeira que servia de ponte, bem na cabeceira, eu não vi uma jaracuçu amarelo.  Distraído que estava, pisei em cima da cobra. Aí ela se enrolou até a metade da minha canela e deu duas picadas em cima do pé. Eu a sacudi longe e atravessei a pinguela sem nem saber como consegui. O meu pai largou o cacho de banana, cortou um cambará e matou a cobra. Depois atravessou pela baobeira, viu o pé e a perna inchada. O veneno agia: bateu íngua na hora e inchou. Todas as picadas de borrachudos foram se abrindo e sangrando. Papai voou na pinguela, me carregando e eu chorando, preocupado com injeção (porque todo mundo tinha medo, né?). Bateu nervoso no velho, não conseguia me carregar. Foi correndo na frente em busca de ajuda; eu fui seguindo manquitolando, devagar. Quem me buscou foi o seu pai [Leovigildo] após a notícia.  Na época, o Mané Belo tinha uma carroça, vendia peixe. Alguém foi atrás dele para me levar ao Hipólito, que tinha um armazém no Sertão da Quina e entendia de farmácia, tinha remédio. O seu pai, que capturava cobras para o Instituto Butantan, amontoou as caixas  e meteu fogo nelas. Tudo desapareceu em cinzas.  A mamãe, vendo que demorava o carroceiro, me pôs nas costas e foi me levando para o Sertão. Ao chegar no Morro do Foge, dois quilômetros depois,  se encostou no barranco para tomar um fôlego e retomou a  caminhada. Bem em frente à casa do tio Antônio Amorim, onde é a hoje é a escola [Áurea Moreira Rachou], fomos alcançados pela carroça do Antônio Belo. Assim que chegamos, o Hipólito aplicou duas injeções, depois de fazer um teste nos olhos. Foi uma em cada braço. Nisso eu já estava com febre a variação. O Hipólito foi prender o gado e sofreu uma prensada na mangueira pelo touro reprodutor, quebrando as costelas. Ficamos os dois precisando de socorro.  Já era noite quando uma ambulância veio de Caraguatatuba para nos levar. Não sei se o Hipólito foi logo medicado, mas eu fiquei desprezado no hospital. No dia seguinte, quando o padrinho Antônio foi me visitar, ficou indignado me vendo naquela situação em que eu estava largado num banco do corredor. Ficou bravo.  Arrumou um táxi do Pacheco (Ford 50) e me trouxe para a Ana Cruz, no Sapê, que era enfermeira da prefeitura. Na casa dela eu fiquei quinze dias; o pé foi pretejando. Maria Cruz tinha a minha idade; Clemente era pequeno; João Paulo, o pai, ajudava no desempenho da mulher. Passando por lá o doutor Benedito, vendo a gravidade do caso, o pé gangrenado, imediatamente ordenou para que me levassem para a cidade, ao hospital de Ubatuba, onde fui examinado com mais atenção. Foi determinado o procedimento, mas não fiquei no hospital. Eu, mamãe e padrinho Antônio ficamos instalados na casa da prima Zica [Luzia], no final da rua Cunhambebe, próximo do matadouro. Ali moramos por oito meses.  O padrinho Antônio trabalhou para ajudar nas despesas da casa. A mamãe ajudava em tudo. O médico cortou a pelanca podre desde o pé até o tornozelo. “Começou a funilaria do pé”.  A Ana do Bastião Migué, mulher do Antenor disse assim: “Aí, Maneco, você parece mulher que ganhou nenê!” (Porque precisava de muito pano para enxugar o pé, saía muita água). O doutor Benedito e o enfermeiro Juscelino iam todos os dias para cuidar de mim. Era uma injeção de penicilina todo dia, lavavam o pé com água oxigenada, retiravam uma espécie de geleia que se formava todo dia no local, enchiam de pó antisséptico, tornavam a medicar e enfaixavam.  No total, tomei doze soros de cobra. O ano era 1956. Após a recuperação da carne, nas pontas dos dedos ajuntava um líquido que fedia demais. Quando estava bem cheio, até redondo, uma “boca” aparecia debaixo do dedo que ficou duro, apontando para cima, e vazava. Era um fedor só. Em 1956 passei por uma cirurgia na Santa Casa de São José dos Campos. O dedo foi amputado, nunca mais se formou aquele líquido horrível.

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