sábado, 17 de outubro de 2015

MEMÓRIAS DO MAR (I)


Visão a partir de um Caminho de Servidão (Arquivo JRS)

                Dias atrás, no mesmo ônibus que saía com destino a Caraguá, embarcou um cidadão tranquilo, logo puxando conversa. Disse ter me reconhecido a partir da fotografia deste blog. "Gosto muito das coisas que você escreve. Até tenho aproveitado para desenvolver o meu trabalho, na faculdade...". Enfim, tive o prazer de conhecer Santiago Santi, um guerreiro de outras terras que vai se acaiçarando. Hoje, tenho a satisfação de apresentar aos amigos a primeira parte deste texto reflexivo a partir da natureza e da cultura caiçara. Boa, amigo! Bem-vindo ao blog!

Memória do mar - Parte I

O mar
sempre a olhar nossos caminhos, mesmo em terra
parece dizer o quanto nos afastamos, o quanto deixamos de ser
o que sempre fomos... quase nem temos mais sal nos cabelos
e nossas roupas desgastam-se sem tocar a água...
Nossas casas estão longe da praia, ruindo lentamente.
A terra, na qual tanto andamos e de onde colhemos
o que era preciso, sem demasia, nos espreita em silêncio e
já não podemos mais tocá-la, as raízes que nos uniam a ela
agora são as historias que contamos aos mais jovens, mas
muitos já não prendem seus ouvidos nelas, as cores e as tintas
que as coloriam desbotam como o cal das paredes
e escorrem pela praia vazia.
As canoas observam lentamente o tempo
comendo suas bordas, paradas
longe da praia elas nem parecem canoas
mas apenas um toco que a maré lança na areia, roído pelos anos.
Um silêncio mareado paira sobre as praias
como se fosse o mesmo silêncio que se ergue das águas depois das tormentas
e vão surgindo nas praias as madeiras e restos dos naufrágios da noite...
Há rostos salgados de sol e queimados de sal
mirando o mar com o olhar indecifrável de um moai...
Olhos que aprenderam a ler o mar através dos séculos
vindos de outros olhares mais profundos...
Ou são rostos de madeira talhada pelo tempo
sob velhos chapéus de palha na maresia dos dias
observando o mar e observando as marés humanas
indo e vindo à deriva em seus próprios mundos
como barcos que nunca navegaram e ilhas que nunca se encontram.
Velhos pescadores sentados à beira do tempo, à sombra de uma árvore
que ainda tem na memória esses mesmos rostos ainda meninos
soltos nas areias como peixes no mar...
Será que vamos nos tornando ilhas num mar do tempo
a navegar nossos silêncios oceânicos cada vez mais fundos?!
Então um vento novo veio de longe, mas não era um vento natural, 
era antes de tudo uma ilusão trocada pelo corpo, pela alma e pela vida,
na qual ter é mais necessário do que conviver e confundiram isso com a verdade e
disseram que era necessário construir estradas, e
as estradas cortaram tantas árvores em tão pouco tempo
que era impossível conta-las, caindo sob os dentes de metal
das grandes serras e tratores.
Quem viu os olhos das crianças e dos animais
atordoados pelo ronco das gargantas dos motores?!
Depois disseram que não era mais permitido cortar algumas árvores
para fazer as canoas e chamaram isso de crime
mas à estrada chamaram progresso...
E nunca demos a eles escolher por nós o que é permitido ou não...
Cortaram as matas e cortaram o caminho para o mar...
Disseram que era necessário pagar pela terra
em que sempre habitamos, geração a geração,
e colocaram preços que não alcançávamos,
Quiseram nos convencer com documentos inventados em cartórios distantes
por gente que não sabia nem os nomes das praias.
Disseram que era terra do governo ou de pessoas que nunca estiveram aqui,
a não ser para vir dizer que não eram nossas as roças, os caxetais, a restinga ou qualquer lugar onde andávamos livres como nossos antepassados índios,
e, assim como nossos antepassados índios, resistimos, mas
também estamos deixando de existir
Disseram que éramos “iletrados” e vagabundos
porque as coisas que sabemos não eram as mesmas dos seus livros, e
não pensaram que talvez pudessem ter tentado aprender algo sobre o modo como vivemos ao invés de impor o que não conhecemos e a maneira com que vivíamos o tempo era diferente
daquela registrada nos relógios , mas o tempo que aprendemos
nos foi ensinado pela própria natureza através dos seus ciclos
Hoje, esses ciclos estão mudados de uma tal forma
que não mais sabemos
o que dizer
quando olhamos o céu ou sentimos o vento ao amanhecer.
Mas não sabemos de que pode servir um diploma ou
um título de qualquer coisa
quando se está num barco que vai afundar, e não se sabe nadar...
Esse barco é o que tem-se feito com o planeta!
Conhecimentos diferentes de lugares diferentes
deveriam gerar algum tipo de sabedoria unidos, mas muitos
são os que preferem destruir o que não entendem...
E muitos são os saberes que se perdem, e isso não nos parece
muito com desenvolvimento...
Os rios ainda seguem para o mar, mas parecem pesados, como se carregassem um grande fardo de lenha nas costas,
suas águas carregam odores que não existiam e os peixes
pouco a pouco foram desaparecendo e não há crianças
em suas margens, mas apenas plásticos, pneus, cimento
Então disseram que estas seriam terras protegidas por lei
e chamaram de parque, mas não disseram nada
sobre proteger quem vivia nessas terras muito antes do parque,
nem sequer perguntaram nossos nomes!
Proibiram nossas roças porque disseram que ela degradava a mata,
mas é o mesmo tipo de roça que os índios praticaram por séculos
e eles eram muitos, cobriam toda essa terra...
Mas, quando olhamos, não nos parece que nosso plantio
tenha feito mais devastação em todos esses séculos
do que a que houve em apenas quarenta anos
desde que chegou a estrada e chegaram as casas imensas
penduradas nas costeiras com suas piscinas azuis e guaritas e vigias armados
nas entradas das praias.
E, de repente, as praias em que andávamos descalços
eram propriedade particular de alguns que nunca vimos
caminhar nessas areias antes e
fomos empurrados para longe da linha das marés.
Uns, não poucos, sucumbiram à tanta informação e valores estranhos
e partiram em troca de algo que não eram ou que não sabiam ser, outros
enganados pela cobiça, que é mais ligeira do que as cobras do mato,
acreditaram no que a ilusão dizia e o tombo foi derradeiro, uns ainda, foram ser caseiros de grandes casas vazias a maior parte do tempo, por um salário, um pequeno lugar atrás delas, para morar, eles, que eram livres nesses terrenos...
Apenas mais um tipo de escravidão.
Casa grande e senzala.
A vida é grande demais para caber em salários medíocres,
para alguém se pretender dono do chão e da água e das árvores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário