terça-feira, 20 de outubro de 2015

MEMÓRIA DO MAR (II)

Amendoeiras se renovando na areia tão familiar a nós.(Arquivo JRS)
Na segunda parte de sua poesia, Santiago Santi nos convoca a reencontrar uma harmonia que se fez pelos milênios, mas que bastaram algumas décadas de cobiça para destroná-la e ameaçar todas as vidas que desse ambiente dependem, inclusive a nossa.


Não seria mais inteligente ser irmão dessas coisas, utilizando-as quando preciso, mas sem exauri-las, para a própria sobrevivência,
e para a sobrevivência dos filhos e dos filhos dos filhos...
Mas pode ser que dizer isso, por mais óbvio que seja, porque não somos nós que dizemos, mas a própria terra e o planeta,
pode ser que dizer essas coisas
seja incompreensível aos seus ouvidos, tão habituados a só ouvirem
as suas próprias palavras.
Mas nada disseram sobre as casas que colocariam em cima do jundu.
Talvez não soubessem o que é jundu,
Talvez achem normal,
em nossa ignorância pensamos que justiça era mais do que apenas
uma palavra para uso exclusivo
de alguns poucos.
E esperamos por ela até hoje, mas já sabemos que ela não virá, ela habita
as taças de vinho nas mesas das mansões com vista para o mar, nas sacadas dos hotéis dependurados nos morros
ela anda em grandes carros importados, não em canoas ou
descalça por trilhas nas matas.
Pensamos que as coisas boas que disseram que viriam eram para todos e
não só para eles mesmos...
Agora quando passamos por antigos caminhos de terra que foram asfaltados
olhamos e vemos remos cruzados enfeitando paredes imensas onde antes havia apenas a encosta e o mar, vemos réplicas de canoas
penduradas sobre varandas vazias e nos parece um tanto sem sentido
enfeitar as casas com objetos que mais parecem de saque.
Isso é muito parecido ao que os piratas e os portugueses e espanhóis faziam...
Mas não é a memória que é curta, é a ganância que é longa e
a história é sempre contada por aqueles
que roubam do outro a chance de contá-la, e de vivê-la,
quando todos são capítulos únicos do mesmo livro da vida
escrito página a página por milhões de anos por todas as espécies que já habitaram esta terra
A nenhuma delas é dado o direito de rasgar estas páginas!
Por que então as rasgamos?
Nossa própria história humana!
O mar
continua batendo nas costeiras das ilhas remotas
como a contar uma história que nunca se recorda
mas que todo dia apaga-se um pouco
em cada remo que deixa de cortar as águas, em cada rancho esquecido,
em cada rede que jaz abandonada, em cada canoa que apodrece num canto, em cada nascer do sol e em cada poente
Até que um dia o mar não nos reconheça mais e nós
não nos reconheçamos no espelho de suas águas.
Onde estaremos quando os últimos peixes forem arrastados pelos grandes navios industriais que rasgam o ventre das águas incansavelmente?!
Quando as casas ruírem de volta ao barro do chão que as moldou?!
Quando cada palmo de chão for loteado e cimentado?!
Quando o último acorde da última rabeca ecoar
nas ruas vazias numa madrugada perdida no tempo
e procissões de lembranças passarem pela última vez
sob as janelas que se fecham.
Passaremos, mas aquilo que aqui vivemos
nestas terras que viram gerações crescerem e sucederem-se
e plantarem e remarem e nadarem nessas águas e voltarem
para a terra que a todos recebe sem perguntar o nome,
tudo isso de algum forma ficará?!
As coisas que aprendemos com o ciclo das estações,
as maneiras de compreender as plantas e os animais, dos quais
dependemos tanto quanto cada ser vivo depende do outro para
que todos tenham sua cota de existência nesse mundo,
os modos de tratar tudo aquilo que nos rodeia
sem a pressa de modificar o natural.
Nunca dissemos que nossa cultura era mais sábia do que qualquer outra
pois, todas, em todas as partes remotas do mundo
são apenas faces distintas de uma só cultura, a humana,
e, como em toda a natureza, é a diversidade que garante a vida.
Também nunca entendemos porque nos classificaram, rotularam e
diminuíram em comparação com esse modo de vida tão destoante
com toda a vida ao redor, não nos parecem tampouco sábios
aqueles que nos chamam de tolos.
Ficará algo?!
Quantos pescadores lançarão suas redes daqui a uns anos?!
Quando os mais velhos repousarem suas vidas e seus barcos
no oceano do tempo solto.
Quando as águas já não tiverem mais lembrança dos vastos cardumes
que viajavam pelas ilhas do sem fim,
quando os rios sufocarem sua voz de água para sempre
e os manguezais não mais serem os berçários do oceano, pois
é roubado das espécies o tempo delas crescerem.
Não existem culturas em museus, mas apenas restos e registros delas,
museus são grandes mausoléus de objetos que sempre duram mais
do que quem os fez...
Uma cultura habita o dia a dia de um lugar, de uma gente, é uma relação
não uma página já pronta, assim como o mar
é sempre o mesmo, mas nunca igual a cada dia.
E não foi em um dia que aprendemos a ler as entrelinhas das ondas e os caminhos do vento...
A humanidade é uma transição de culturas, mas sempre tem prevalecido
a transição pela força e para onde esse modo de agir nos levará
é algo que já está acontecendo...
E o que se perde aqui
é o que se perde cada vez que que num canto distante, numa ilha ou
em qualquer lugar do mundo, aqui ou na amazônia,
uma aldeia desaparece, um povo morre, uma floresta acaba, e com ela, espécies muitas vezes nem conhecidas, mas tão importantes quanto tudo,
substituídos por um número num papel.
Isso pode parecer distante para alguns, ou para muitos, mas
também foi para nós um dia...
Talvez algo restará,
no calor da terra, alimentando-a com nossa frágil e efêmera matéria ou
no ventre do mar, de onde um dia todos nascemos, nesse olhar que perdura
sobre o tempo em forma de alguma canção ou poema,
permaneceremos.
Talvez num olhar puro de uma criança em frente ao mar, descendente
de um povo que por muitos séculos integrou-se a um lugar
de forma muito próxima ao que poderia se chamar de harmonia, talvez
algo fique ainda por uns tempos na memória do mar, ou
enquanto o mar existir
porque a memória do mar
é mistério
que ninguém sabe explicar.


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