segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Chegará o dia em que...

(Foto: Júlio Mendes- Praia da Enseada/2010)
                Em 1563, os padres Anchieta e Nóbrega, após uma estadia confabulando com os senhores de engenhos (líderes políticos do Brasil colonial) na Baixada Santista, partiram numa comitiva, sob o patrocínio de José Adorno, um desses líderes, para negociar a paz com os índios confederados (Confederação dos Tamoios).
                A aldeia de Yperoig que, segundo especialistas, significa “água de tubarões”, localizada onde é a atual cidade de Ubatuba, foi escolhida como território de negociação devido a presença de um cacique por nome de Koakira, considerado amistoso pelos jesuítas.
                O velho Catarino dizia:
                “Neste chão de Ubatuba, logo ali onde era a lagoa (que deu o nome da Barra da Lagoa), era onde os índios tinham as suas ocas. Suas canoas subiam pelo rio e logo ganhavam a lagoa. Yperoig foi escolhido pelos padres e por quem mandava porque era um lugar estratégico, de onde partiam as frotas de canoas e as tropas a pé a partir do Caminho das Antas, onde hoje se conhece como Cachoeira dos Macacos. Desse lugar saía um mundaréu de gente brava que aterrorizava os portugueses!”.

sábado, 10 de setembro de 2011

Tá sobrando


                Rogério Mesquita, o Rogé, “anda por todo canto, sabe um monte de coisa só de escutar”. Foi o que eu escutei da minha vó Eugênia. E o Rogé sabia mesmo!
                Certa vez, enquanto olhava para o mar, ele contou do “sobrado velho” (que eu nem tinha ideia de onde era), porque era importante etc. Bem mais tarde eu descobri a referência: era o Casarão do Porto, antiga casa de Manoel Balthazar, na boca da barra do Rio Grande de Ubatuba. Hoje é parte da Fundart, mas desde 1959 foi tombado como patrimônio histórico e arquitetônico.
                De acordo com o Rogé, ele era moleque quando conheceu o lugar:
                “Naquele  lugá ali era o Hotel Boidapeste [Budapeste]; a gente mais velha dizia que aquela era a casa mais bonita da cidade. O primeiro dono foi um português que vendia e comprava;  dali despachava e arrecebia mercadoria. A língua do povo diz que o hómi enricou com café ainda no tempo que o Brasil tinha imperadô –que aparece em livro com barba branca! Esse portuga teve umas filha bonita pra perdê! Só que não era pra bico de pobre! Arrumaro marido, faiscaram daqui! Só uma ficô na nossa terra... terminô sua vida em Taubaté. A propósito, foi gente dessa cidade, o Guisado [Guisard] que mais tarde, adespois do tempo da revolução do Getulho [Getúlio], comprô  o velho prédio pros tempo de férias. Naquele trecho, entre a igreja e o sobrado, em tempo assim, ficava cheio de gente se tecendo: era um tal de querê vê gente de fora e querê sê visto também! Tinha gente nova na cidade por um tempo: tanto no frio como no tempo quente. O boato dizia que a maioria era empregado do dono do sobrado. Agora, se acreditá no que disse o Zequita [José Alves Barreto], vão fazê não sei o que lá de curtura. Acho que o sobrado velho tá sobrando”.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Procurando saci

                Quando pequeno, ainda antes de entrar na escola, escutei alguém dizer que o saci, antes de ser saci, era um pássaro. Não sei porque, mas...de repente, após umas orientações do tio Maneco Armiro, estava eu com uma arapuca armada no aceiro da roça pensando em capturar o saci em forma de pássaro.
                Foi justamente esse mesmo tio o primeiro a se importar com isso. Demonstrando muito interesse, foi me explicando que o tal passarinho não era nem grande nem pequeno, tinha um bico roxo e laranja; era pulvo com pintas encarnadas. Ainda me indicou uma moita de erva baleeira, dizendo que ali ele já tinha visto uma ninhada na semana anterior. Empolguei-me; armei naquele lugar a arapuca. Na mesma tarde caiu uma juriti; no dia seguinte era a vez de um sabiá galinha. Só sei que, dos muitos pássaros capturados, nenhum passava perto da descrição do tio Maneco.
                Depois foi a vez do tio Tião, pícaro como ninguém, se interessar pela minha insistência. Após ter-lhe explicado tudo, me aconselhou:
                -Pode continuar armando a arapuca, Zezinho!  O tio Maneco ensinou direito! Logo você prende o saci que sempre está debaixo da baleeira!    (Eu só não percebi o sorriso maroto dele).
                No dia seguinte, de longe, não vi nenhum passarinho na arapuca, mas estava desarmada, tinha alguma coisa dentro. Aproximei-me curioso. Sabe o que era? Um monte de bosta! E das fedidas! No fim da tarde, inocentemente, contei o ocorrido ao tio Tião. Depois de uma risada, eis o seu comentário:
                - Vai ver que embaixo da baleeira é o "cagador" do saci!  (E saiu gargalhando pelo caminho afora).
                Demorou ainda um tempo para que eu entendesse o que tinha acontecido. Quem disse que o saci o mestre nas reinações?

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Gusto, o patriota

                O cidadão Gusto, natural da praia da Santa Rita, no município de Ubatuba, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, foi convocado e esteve por alguns meses de prontidão na Ilhabela, num destacamento preparado para embarcar a qualquer momento para a Europa. De acordo com o mesmo, os treinamentos eram puxados e a disciplina era rigorosa.
                O tempo passou, a guerra chegou ao fim, os “Recrutas da Ilha” foram devolvidos às suas famílias e aos seus lugares. Porém, para o Gusto, o ritmo da caserna deixou marcas, pretendia se perpetuar. Prova disso que, sempre nos finais de tarde, perto do serão, na praia vizinha (do Perequê-mirim), onde havia mais moradores, o reservista praticava ordem unida com uma rapaziada. De acordo com o testemunho de Antonio Julião, era empolgante e ao mesmo tempo engraçado escutar o “Um, dois, feijão com arroz...um, dois, feijão com arroz...Ordinário, alto! Ordinário, marche!”. Eu ficava imaginando a cena: Gusto, o patriota e os seus recrutas, cada um com uma vassoura ao ombro, marcando a areia molhada do lagamar. Era muita dose de civismo na terra do peixe com banana verde!
                O querido Gusto e a sua companheira terminaram a vida esmolando. Certamente que, se ele não fosse tão pobre, sua postura patriótica teria imposto seu nome a ruas e outros logradouros deste município tradicionalmente conservador na política.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Seis meses de textos e imagens

          - É claro que não, menino! Com a fé em Deus e aquele cacete de guatambu atrás da porta eu não tenho medo de nada!
                  Com esta frase da vó Martinha, eu tive a ousadia, após muitas motivações, em criar este espaço para transmitir um pouco do que tenho da cultura caiçara. Agora está completando seis meses!      Portanto, aqui estamos, entre a serra e o mar, comemorando uma data especial!
               Entre outras atividades, eu vou dando um jeito para me satisfazer e oferecer aos leitores as características desse lugar por nome de Ubatuba, dessa cultura chamada caiçara. Infelizmente falta mais tempo para produzir, digitar mais coisas, mas...o prazer é imensamente maior que o esforço.
                       Um fraternal abraço!
                                                          Até!
                                                                 Zé

domingo, 4 de setembro de 2011

A roça do Mané Bento

                O meu parente Mané Bento, famoso por sua capacidade de “ter tudo na ponta da língua”, respondia imediatamente e com uma elaboração muito boa a qualquer pessoa. Também era notória a sua repulsa ao trabalho. Por esta característica muitos não gostavam dele, mas nem por isso o maltratavam. Desse modo vivia bem, estava sempre visitando os outros, participando das rodas de causos e até puxando rede na praia. Ocasionalmente cultivava uma rocinha de mandioca. A sua morada ocupava um pequeníssimo espaço do jundu, na praia da Fortaleza.
                Desse tempo que falo, há mais de cinquenta anos, a religiosidade estava centrada nos santos (interventores dos homens junto a Deus). Havia uma imensidão de santos e santas se tecendo entre a caiçarada, recebendo esmolas, promovendo festas nas capelas e casas.
                Um costume caiçara desse tempo era, depois de terminar a semeadura ou o plantio de mudas e tocos de rama de mandioca, dedicar a nova plantação a algum santo (ou santa). Acreditava-se que, sob a proteção de uma santidade, haveria fartura, as formigas atacariam menos, etc. Afinal, era um tempo de menos tecnologia e estudos limitados de muitos problemas, num lugar afastado, isolado de centros desenvolvidos. Tudo era muito difícil. O jeito era apelar para o transcendente, viver sempre esperando pequenos milagres. Para encurtar o causo, o Mané Bento, dentro da tradição, ofereceu a sua roça a Nossa Senhora, a mãe divina.
                A roça de mandioca do meu parente ficava no caminho do bananal do Sul, perto do Dito Silidônio e Joaquim Sirvino. Não passou muito tempo para ser notório o mato encobrindo as bonitas ramas por motivos óbvios, em  conformidade com o seu perfil. As pessoas se importavam, comentavam até o dia em que o meu avô Armiro perguntou se ele não iria carpir aquela “sujeirada”. Escutou a seguinte resposta:
                - Eu não vou carpir coisa nenhuma! Eu dei a minha roça pra Nossa Senhora, não dei? Então, é ela que tem de carpir!
                     Ah! Ia me esquecendo! Foi esse meu parente que um dia, depois de falar sobre a briga entre os tupinambás e os portugueses, afirmou que "não restava muita coisa a um povo que tinha pela frente a morte ou a escravidão".

sábado, 3 de setembro de 2011

Diziam os antigos...

                A minha prima Aninha vivia querendo ensinar as coisas que um dia aprendera dos seus pais, avós etc. Sempre tinha ocasião para isso: era na roda raspando mandioca para fazer farinha, sentados pelas sombras num dia após o almoço - quando muitos até roncavam gostosamente -, ou até mesmo no serão, no momento que mais gente se empolgava para contar e ouvir coisas da vida da gente e da gente de outros tempos. Hoje fico pensando nos fragmentos das suas prosas, na empolgação da prima a ensinar. O seu lugar preferido era ali, no terreiro da casa, bem na beira da costeira do Saco dos Morcegos. Eis algumas das suas pérolas da nossa tradição oral:
                “É assim mesmo, gente! Se uma família tiver sete filhos homens, o mais velho precisa ser o padrinho do caçula, senão este vira lobisomem!”.
                “Sabe o que acontece com quem dança na quarta-feira de cinza? Cria rabo!”.
                “Quando chega alguém na casa que o dono não gosta, basta colocar uma vassoura atrás da porta que a visita sai na hora!”.
                “Os homens não casam com mulher de dedo do pé bem maior que o outro porque senão ela manda na casa!”.
                “Eu e os meus irmãos, se choramos à noite, escutamos do papai e da mamãe que a coruja vem furar os nossos olhos. A gente acredita; tem de engolir o choro. E o pior: tem uma coruja no nosso quintal!”. Nessa hora, quando o sol já deixava escurecida a Ilha da Vitória que de longe nos olhava, a criançada imaginava a citada coruja numa daquelas árvores a espreitar todo mundo e doida para furar olhos. Rapidinho cada um queria ir para a sua casa.
                E a Aninha sempre encerrava a prosa com um argumento falacioso, de apelo à autoridade:
                “Tudo isso diziam os antigos, repetem os mais velhos de hoje e as pessoas sabidas como eu!”