segunda-feira, 28 de julho de 2025

PÁTRIA DOS LIVROS

 

Casarão do Porto - Arquivo Guisard 

   Em época de alguns encontros literários acontecendo nas proximidades, tenho de citar livros e autores. Mohamed Mbougar Sarr, um escritor senegales, escreveu o seguinte em uma história (A mais recôndita memória dos homens), onde uma mulher está se referindo a uma pátria que se defende sozinha. "Que pátria é essa? É a pátria dos livros, é óbvio, dos livros lidos e amados, dos livros lidos e desprezados, dos livros que sonhamos escrever, dos livros insignificantes que foram esquecidos e nem sequer sabemos se alguma vez os abrimos, dos livros que fingimos ter lido, dos livros que jamais leremos, mas dos quais também não nos separamos por nada do mundo, dos livros que aguardam sua hora em uma noite paciente, antes do crepúsculo deslumbrante das leituras da alvorada. Sim, eu dizia, sim: serei cidadã dessa pátria, serei leal a esse reino, o reino da biblioteca".

    Os livros nos permitem viagens fantásticas e uma vantagem principal: não cair tão facilmente nas garras de quem conspira contra a democracia e contra os direitos humanos. No momento, relendo a biografia de Félix Guisard (fundador da Companhia Taubaté Industrial), escrita por Cláudia Martins, faço questão de repassar um dado histórico: 


   Em 1933, as festas da família ganharam mais um lugar. É que Félix Guisard adquiriu um casarão em Ubatuba, chamado Sobradão do Porto. O local fora construído por Manoel Baltazar da Cunha Fortes, comerciante português que depois o vendeu para o Julius Kerstz, húngaro que fez dele o Hotel e Restaurante Budapest e que, por sua vez, o vendeu a Guisard. O prédio foi todo construído com material vindo de Portugal. Até os batentes de pedra vieram com lastro do navio. Félix Guisard fez questão de preservar cada canto da casa, consciente do seu valor artístico.

   Além do sobrado, Guisard também comprou algumas terras e um pedaço da praia do Perequê-açu. A cidade, ainda pouco habitada e também pouco visitada por turistas, oferecia um mar de paz e tranquilidade depois do trabalho estressante da fábrica. Porém, o problema estava em chegar a Ubatuba. A estrada era interminável, cheia de buracos e. quando chovia, o carro atolava na lama e não havia que o fizesse andar. Era preciso procurar a fazenda mais próxima e emprestar uma junta de bois para arrancar o carro do atoleiro. E a viagem pela Serra do Mar durava boas horas.


Em tempo: acabara de ser inaugurada a Rodovia Oswaldo Cruz (Taubaté-Ubatuba), a primeira via rodoviária a adentrar o território ubatubense. Vinte e cinco anos depois seria concluída a seguinte que faria a ligação com a cidade vizinha de Caraguatatuba.


sexta-feira, 25 de julho de 2025

FARINHA POUCA...

      

Gatinho da Maria - Arquivo JRS 

  "Pior que a maldade é a estupidez, a ignorância humana", já dizia o velho Arcelino, um cidadão carioca que, na década de 1970, veio tentar a vida em Ubatuba, se tornou morador do Perequê-mirim. Ele se dava muito bem com o meu pai, bebericavam e proseavam juntos sempre que podiam. Meu velho sempre repartia uns peixes com esse amigo porque ele não era da pesca, não foi criado nessa cultura. A profissão dele? Cortava pedras, entendia muito de granito! (Observação: do Estado do Rio de Janeiro vieram muitos trabalhadores para a extração de granito verde de Ubatuba no final da década de 1960 e seguinte).

      Vez ou outra eu me pego pensando, refletindo a partir da frase acima, desse vizinho de outrora que ousava comentar sempre temas em torno da ditadura militar daquele tempo, da minha infância. "Ah, o Celino enxergava tantas coisas além da nossa visão!".  Agora, lendo um livro do Nicolelis e notando os avanços da era digital, posso afirmar que é atualíssimo essa máxima que ouvi há tanto tempo. Não tenho dúvida de que é a estupidez, a ignorância, que alimenta as maldades. Pior: existe um minúsculo grupo de humanos neste planeta que sabe o objetivo, o que está conseguindo com investimentos em programas baseados na tal inteligência artificial. Essa gente, talvez poucas dúzias mundo afora, espera suplantar a capacidade mental dos seres humanos, ter o controle total, traçar o destino da humanidade. Assim se findará a privacidade das pessoas, os sentimentos de solidariedade, de empatia, de justiça. Quer maldade maior? 

      Quando vemos lideranças religiosas e politicas fazendo de tudo para alavancar a ignorância, sobretudo aos mais pobres, podemos crer em uma coisa: essa gente está em conluio para acabar com a capacidade humana de se indignar com tudo aquilo que tira a vida (nossa e do planeta). É a ambição de não repartir, de sonegar impostos, de controlar governos que garantam essas desigualdades sociais e toda sorte de maldades. Era nessa mentalidade exterminadora que se encaixava a citação recorrente do meu finado pai, da minha gente caiçara: "Farinha pouca, meu pirão primeiro!". Eu, criança de tudo naquele tempo, fazia como um gato: só espreitava e escutava as prosas. Ainda bem!       

domingo, 13 de julho de 2025

SEM SISO NO SISAL

    


    O modesto Jorge cresce cada vez mais na afinação com a literatura e foi um dos curadores do Pirão das Letras, o primeiro festival literário de Ubatuba. Aproveito para parabenizar os demais curadores e parceiros desse evento ocorrido recentemente nessa cidade. Que venham muitos outros!

     Eu tive a honra de apresentar o mais recente livro (Sem siso no sisal) desse estimado e grande amigo. Legal, né? É este sincero texto que apresento agora às pessoas que me seguem no coisasdecaicara.blogspot, nas publicações do Ernesto (Jornal Acontece) e demais leitores pelo mundo agora. 


       Logo no início deste livro, percebi um pouco da história do autor: Jorge Ivam Ferreira. Imaginei a vida dele em Iaçu, no interior da Bahia, e a sua familiaridade com os elementos da realidade nordestina, da lida do pai autodidata que queria os filhos estudando, do irmão que ainda mora lá etc. Pensei: "O Jorge e as suas lembranças de menino". Me veio à mente um poema de T.S. Eliot dizendo isto: "E ao final de nossas longas explorações, chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez". Ou seja, o autor da novelinha (como ele a descreve) mexe a colher na sua imensa panela e faz aflorar um mundo de beleza dos primeiros anos em família e na vida comunitária. Garimpando as palavras, ele vai nos apresentando o seu mundo e os dilemas possíveis e/ou imaginários diante do assombro que é a vida (porque faz pais desejarem outros destinos aos filhos, força migrações, possibilita encontros e desencontros...). Ao final da história e do suspense, capaz de continuar acontecendo sempre numa sociedade de tantas surpresas, desigualdades e injustiças, notei uma alma que tem um sopro de saudade, sobretudo da solidariedade da vizinhança nas agruras, nos padecimentos da vida. Termino a leitura muito agradecido pelo talentoso baiano que escolheu o chão caiçara de Ubatuba e pela nossa amizade, eu reconheço o bem que nos faz "uma alma que sabe o que merece ser lembrado", como escreveu Rubem Alves. No fundo, o Jorge está repartindo conosco o que foi acumulando em mais de meio século em seu ser.


    Vida longa ao Jorge e à sua produção literária! Vida longa aos que fazem de tudo pela literatura neste chão caiçara!

quinta-feira, 10 de julho de 2025

PROSA COM O MACIEL

 

Tartarugas - Arquivo JRS

    Maciel vive no mato, no alto da serra, mas nasceu e se criou no jundu do Ubatumirim, onde era o estaleiro do padre há décadas. Esse caiçara trabalhador passou pela pesca, foi embarcadista, de onde traz uma experiência inesquecível. Também aprendeu muito na construção civil (prova disso é a sua casa no meio do mato, nas proximidades de Catuçaba, município vizinho de São Luiz do Paraitinga). Na sua área tem de tudo um pouco, trazendo uma vez por semana (quarta-feira) a sua produção para a venda na Feira Agroecológica (final da rua Orlando Carneiro, no centro de Ubatuba). Até vinho de amora está produzindo na friagem da Serra do Mar. A grande novidade do momento é o mel da florada de suas jabuticabeiras. Quer provar? Passa na feira!

    Toda vez que eu me encontro com o Maciel, o assunto é a nossa cultura, os nossos traços culturais. Inevitavelmente o nosso palavreado destoa de muitos que nos rodeiam. Por isso alguém da roda, que escutava a prosa, comentou: "Vocês precisam montar um vocabulário, explicar as palavras que os caiçaras usam". Eu disse que já existe um modesto livro composto pelo João Barreto, meu primo da praia da Fortaleza. Coube ao Carlos Rizzo a editoração. Se esgotou assim que saiu. Também o Peter, da Enseada, produziu um livro no tema das falas caiçaras. Indo mais longe, no ano de 1978 Olympio Corrêa de Mendonça concluiu a tese de doutoramento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob o título: O léxico do falar caiçara de Ubatumirim. Portanto, lá estão os falares de muitos personagens familiares ao Maciel. Vale a pena ler, minha gente! Também vale muito uma visita ao Vale do Paty, o sítio desse meu amigo!

   O assunto, por influência dos temperos que o Maciel estava negociando, rodou em torno de gastronomia. "Qual é a melhor parte do peixe, Zé?". Eu respondi, sem dúvida alguma: "É a bentrecha, claro!". Ele concordou comigo. Um dos ouvintes perguntou a nós: "O que bentrecha?". Esclarecemos na hora: "É o ombro do peixe, aquela parte que pega a barrigada". Que saborosa é essa parte do peixe - de qualquer peixe!-, principalmente quando, depois de secagem ao sol, vem acompanhada com a deliciosa farinha de mandioca!

  Muito mais nós proseamos gostosamente. Só faltou, no final, um café com biju.